**OPINIÃO
- Por Amanda Cunha e Mello Smith Martins e Maicon José Bergamo
Muito tem sido discutido na imprensa e nas redes sociais sobre a intenção do estado de São Paulo de instituir seu próprio modelo de avaliação biopsicossocial via Decreto. A preocupação certamente é legítima, pois pode afetar diretamente a vida de milhares de pessoas. A convite do Diário PCD, queremos chamar a atenção dos cidadãos para algumas questões importantes.
(In)competência do estado de São Paulo
Parte da discussão tem se focado na (in)competência do estado de São Paulo para estabelecer regras sobre essa matéria. Nos parece, contudo, que esse não é o ponto principal, por algumas razões.
Primeiramente, existem mecanismos específicos para barrar normas inconstitucionais, ou criadas por um ente incompetente. Se necessário, esses mecanismos serão certamente utilizados pelo Ministério Público ou por outros legitimados para colocar essa competência em discussão.
As competências exclusivas da União Federal estão dispostas no artigo 22 da Constituição Federal – e não há nenhuma parte desse dispositivo que contemple especificamente essa situação. Isso significa que outros incisos podem ser interpretados de forma a contemplá-la, mas não é algo que possa ser definido de antemão, sem o crivo do judiciário.
Dentre as competências exclusivas da União, está a seguridade social. No entanto, a avaliação biopsicossocial que o estado de São Paulo pretende regulamentar via Decreto, embora utilizada também para a obtenção de benefícios e auxílios junto à assistência ou previdência social, não se limita a isso. Portanto, há espaço para discussão – e, enquanto isso, há espaço para que o Decreto siga em frente.
Por outro lado, o artigo 24 da Constituição coloca como competência concorrente entre União e Estados legislar sobre a proteção e integração social das pessoas com deficiência. Se a questão for judicializada, possivelmente o estado de São Paulo invocará esse dispositivo constitucional para justificar sua competência.
Além disso, o mesmo artigo deixa claro que há competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal quando inexistir lei federal sobre normas gerais, adquirindo os estados competência legislativa plena.
Tudo isso para demonstrar que ambos os pontos de vista podem ser defendidos: tanto pela competência do estado de São Paulo, atendendo ao artigo 24, quanto pela sua incompetência, fundada em determinadas interpretações do artigo 22.
Outro ponto importante a ser destacado é que há duas normas diferentes cujas discussões têm se entrelaçado (e, muitas vezes, se misturado): uma delas é o projeto de lei que trata especificamente sobre a isenção de IPVA para pessoas com deficiência, enquanto a outra é o decreto que virá regulamentar a avaliação biopsicossocial no estado de São Paulo em seguida para essa finalidade. Se o problema reside no Decreto, atacar a Lei pode representar um esforço mal direcionado, e vice-versa.
A teoria na prática
Além de analisar a constitucionalidade das leis sob aspectos formais, é preciso contemplar os efeitos práticos pretendidos e os efeitos práticos obtidos a partir dela. Em outras palavras, é preciso analisar como essa avaliação tem sido feita atualmente, e se haverá alguma mudança de ordem prática com a sua regulamentação (seja pelo estado de São Paulo, seja pela União Federal).
Atualmente as pessoas com deficiência já são submetidas a avaliações para que possam ter acesso, por exemplo, à isenção de impostos, ou a benefícios da seguridade social. O que se avalia é a barreira social causada pela deficiência, e se esta é de longa duração.
É uma avaliação que considerada aspectos objetivos ou físicos, mas que é, essencialmente, subjetiva, já que seu propósito maior é avaliar se há dificuldades na participação plena e efetiva na sociedade, em condições de igualdade com as demais pessoas.
Determinadas doenças, transtornos ou condições de saúde são entendidas inequivocamente como deficiência: é o caso de pessoas com Síndrome de Down, cegas, paraplégicas, entre outros.
Contudo, há deficiências que não são visíveis, mas ainda assim impedem a participação plena na sociedade, por exemplo dificultando ou impedindo o acesso ao trabalho. É o caso, por exemplo, de pessoas com epilepsia de difícil controle (resistente a medicamentos), que sofrem crises recorrentes.
Aí é que reside a dificuldade em criar critérios demasiado específicos para a avaliação, e é por essa mesma razão que não existe uma lista fechada (isto é, um rol taxativo) das deficiências na lei. A avaliação é muito mais determinante do que o texto da lei, pois este é necessariamente aberto, e a avaliação contempla as particularidades de cada caso.
A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a qual estipula as regras sobre o BPC (Benefício de Prestação Continuada) para pessoas com deficiência, faz referência à Lei Brasileira de Inclusão (LBI), colocando que o grau de deficiência será auferido (constatado) por meio de instrumento de avaliação biopsicossocial, nos termos da LBI.
É possível que o Decreto faça o mesmo, e tão somente aplique aquilo que já está previsto na LBI, contemplando quatro aspectos essenciais: os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividades; e a restrição de participação.
Se o Decreto extrapolar ou deixar de observar esses quatro aspectos, haverá sempre a possibilidade do controle por parte do judiciário, seja sob a forma de uma ação coletiva, seja em ações individuais.
Aqui, o ponto mais importante não é a competência legislativa, mas sim a garantia dos direitos das pessoas com deficiência. E isso coloca uma série de questões que somente serão respondidas com o tempo, e consolidadas pelo judiciário.
Por exemplo: se o INSS constatar uma deficiência moderada, mas a avaliação para fins de isenção do IPVA constatar uma deficiência leve, a avaliação do INSS poderá ser utilizada como argumento em um recurso administrativo? Enquanto não há Decreto, e enquanto ele não for aplicado e questionado (inclusive judicialmente), tentar prever essas respostas não passa de um exercício de futurologia.
(Des)igualdade nas avaliações
Outro ponto bastante discutido é a possível desigualdade que o estado de São Paulo estaria criando, em relação a outras partes do país. É bem verdade que a possibilidade de cada estado regular sua própria avaliação tem o potencial de criar um tratamento diferenciado em cada estado. Mas também é verdade que o artigo 24 da Constituição autoriza os estados a legislarem sobre a proteção e a integração das pessoas com deficiência.
Mais do que isso, também é verdade que as avaliações já são realizadas atualmente, e que é incontornável admitir que existe uma discrepância entre os estados. Não fosse o caso, não haveria tantas demandas judiciais discutindo os resultados dessas avaliações: o fato é que a situação das avaliações já é caótica e desordenada, e a sua regulação poderia vir a ser benéfica.
Ou seja: na prática, já existe uma avaliação, e, não havendo regulamentação específica, há desigualdade na forma como é realizada em cada local. Se o Decreto do estado de São Paulo somente vier a disciplinar a avaliação nos termos da LBI, assim como feito na Lei Orgânica da Assistência Social, ele atuará dentro das suas competências, e poderá vir a promover maior igualdade, ao trazer mais segurança jurídica.
Se, por outro lado, o Decreto extrapolar as disposições da LBI, e vier a criar seu próprio conceito de deficiência de forma restritiva, excluindo parcela da população, mais uma vez seus efeitos poderão ser revertidos judicialmente. Independentemente da existência de uma ação coletiva, as pessoas com deficiência que se virem prejudicadas terão o direito de socorrer-se do judiciário, para ver seus direitos (seja de ordem constitucional, ou aqueles dispostos na LBI) sejam devidamente respeitados.
Fraudes e direitos
Por fim, uma última questão que julgamos importante destacar é o argumento de que permitir que cada estado crie suas próprias regras incentivaria as fraudes, quando o papel do governo seria de coibi-las.
Certamente, o ideal seria ter uma norma emanada pela União que disciplinasse um modelo único de avaliação biopsicossocial, a ser adotado em todos os estados. Em dezembro o Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos comunicou a intenção do governo federal nesse sentido – mas ainda não houve repercussão na prática.
É possível que, oportunamente, a União venha a criar as regras para esse modelo único – e, se o fizer, poderá ser o caso de derrogar as demais normas estaduais que estejam vigentes até lá, criadas com o propósito de preencher essa lacuna.
Contudo, essas questões não podem ser relacionadas diretamente às fraudes, a fim de utilizar essa relação como argumento para deslegitimar a avaliação pretendida pelo estado de São Paulo. O argumento de que algumas pessoas sem deficiência poderão tentar fraudar a lei não pode servir como base para privar pessoas que de fato têm deficiência dos seus direitos básicos.
Além da avaliação, serão certamente criados mecanismos com o propósito de inibir esse tipo de conduta. A criação de mecanismos para coibir e analisar irregularidades certamente será feita, assim como o fez a Lei n.º 13.846/19, ao instituir o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade.
Os direitos das pessoas com deficiência, seja à isenção de tributos, seja ao acesso aos benefícios da seguridade social, ou em qualquer outra situação, devem ser preservados, mesmo que ocorram tentativas ilegítimas de beneficiar-se deles.
Cabe ao Estado coibir as irregularidades, ao mesmo tempo em que garante o acesso das pessoas com deficiência aos direitos previstos na lei brasileira, e cabe ao judiciário realizar o controle sobre os atos do executivo e do legislativo, verificando a aplicação correta da lei em cada caso.
*Amanda Cunha e Mello Smith Martins é advogada e pesquisadora
Maicon José Bergamo é advogado previdenciário
Advogados do escritório Smith Martins Advocacia
Conteúdo editado e conferido por www.diariopcd.com.br.
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