- Por Joelson Dias
A governança da Internet foi uma das questões mais controversas durante a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS), e também na Assembleia Geral da ONU após a adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de 2015.
Considerando que qualquer abordagem sobre esse assunto deve atender aos standards impostos pelos sistemas de direitos humanos, o Secretário-Geral das Nações Unidas convocou o Fórum Global de Governança da Internet (IGF) em 2006. Sendo um fórum anual multissetorial (em contraste ao multilateralismo, que costuma ser limitado à ação dos governos) das Nações Unidas, o IGF se propõe a inspirar e formular diretrizes relacionadas à internet aos governos, setor comercial público e privado e sociedade civil, incluindo as comunidades acadêmicas e técnicas.
Com base na Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação de 2005, as principais metas propostas pelo Fórum são, por exemplo: transformar a exclusão digital em oportunidade digital e garantir um desenvolvimento harmonioso e equitativo para todos; discutir questões sociais, econômicas e técnicas, incluindo acessibilidade, confiabilidade e qualidade da rede; liberdade de buscar, receber, difundir e utilizar a informação, em especial, para a criação, acúmulo e difusão do conhecimento; e propor meios para acelerar a disponibilidade e acessibilidade da Internet no mundo em desenvolvimento.[1] Assim, percebe-se que a aplicação de tecnologias digitais deve, portanto, ser responsiva e inclusiva para todos os membros da população. Enquanto as tecnologias digitais estão se integrando cada vez mais em todos os aspectos de nossas vidas e se tornaram uma força para a inovação, as pessoas em situação de vulnerabilidade (por exemplo: pessoa com deficiência, mulheres, população pobre e LGBTQIA+, negros) ainda são marginalizadas e enfrentam barreiras significativas para acessar e usar essas tecnologias. Esses
obstáculos reduzem, por exemplo, suas oportunidades no mercado de trabalho e diminuem seu potencial para uma vida independente e inclusiva.
É essencial promover mecanismos para que os mesmos preconceitos existentes em nossa sociedade não sejam reproduzidos nas redes. Sabemos que maior parte das tecnologias são construídas por um grupo homogêneo de pessoas (brancos, homens, cisgênero).
A garantia de acessibilidade, prevista como meta na Agenda de Tunis, deve ser compreendida tanto como a necessidade de prover meios para assegurar o uso da internet às populações economicamente vulneráveis; como a possibilidade de qualquer indivíduo ter acesso ao ambiente da web, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, independentemente de eventual impedimento de natureza motora, visual, auditiva ou intelectual.
Assim, para promover a acessibilidade nas redes, que inclusive é também garantida no art. 9 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, os países precisam conjugar seus esforços para garantir que as ferramentas da Internet sejam desenvolvidas de acordo com o desenho universal. Desenho universal significa a integração de produtos e/ou serviços acessíveis e utilizáveis por tantas pessoas quanto razoavelmente possível, em uma ampla variedade de situações e na maior extensão possível sem a necessidade de adaptação especial ou projeto especializado.
Registra-se que a ideia de garantir acessibilidade na Internet está em sintonia com a própria Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, que tem como compromisso “não deixar ninguém para trás”, estabelecendo como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável a redução, até 2030, das desigualdades, inclusive por meio de medidas que promovam a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra (ODS n. 10.2).
Nesse aspecto, um dos indicadores do grau de desenvolvimento alcançado por uma sociedade é a capacidade de incluir as diversas características e especificidades das pessoas e dos grupos sociais na Internet, oferecendo-lhes oportunidades em igualdade de condições para que consigam alcançar seu projeto de vida. Isso porque a tecnologia digital tem o potencial transformador de manter uma economia em funcionamento e permitir que as pessoas acessem os serviços e produtos básicos necessários para a vida cotidiana, como educação, saúde, trabalho e cultura.
O IGF é, assim, uma resposta à necessidade de se ter um mecanismo internacional para discutir e chegar a consensos sobre as questões e regras de funcionamento para a Internet, inclusive sobre os meios inclusivos que garantam acesso à rede aos indivíduos em igualdade de condições.
Até o momento, o Fórum teve dezessete encontros, incluindo dois no Brasil (2007 e 2015). No Fórum desse ano de 2022 realizado na Etiópia, do qual tive a oportunidade de participar presencialmente, cinco aspectos foram abordados: tecnologias avançadas; evitando a fragmentação da Internet; conectando todas as pessoas e protegendo os direitos humanos; segurança, proteção e responsabilidade; governando dados e protegendo a privacidade.
Divulgada pelo Secretário-Geral da ONU, a Agenda Comum propõe, dentre outros, um Pacto Digital Global (GDC) a ser adotado durante Cúpula do Futuro em 2024. Espera-se que referido documento descreva princípios compartilhados para um futuro digital aberto, inclusivo, gratuito e seguro para todos, que também introduza critérios de penalização em caso de ausência de acessibilidade, discriminação, racismo, capacitismo ou informações enganosas, por exemplo. O GDC é o passo mais recente para a compreensão compartilhada dos principais princípios digitais globalmente e regras comuns que orientarão o desenvolvimento de nosso futuro digital.
Assim, diferentemente dos Objetivos do Milênio da ONU, que, incialmente, não contemplaram, expressamente, os direitos das pessoas com deficiência, esperamos que o Pacto Global Digital venha a reconhecer como uma das obrigações a implementação do desenho universal na tecnologia da web.
Lamentavelmente, a questão sobre governança na Internet ainda não é assunto recorrente nas pautas dos movimentos sociais nacionais que representam os direitos das pessoas com deficiência. Enfatizamos que a pressão social por medidas inclusivas catalisa o reconhecimento das vozes desse segmento social, lançando assim maior visibilidade às opressões e barreiras vivenciadas, fomentando a elaboração de documentos internacionais, leis e políticas que promovam a acessibilidade na web.
[1] Íntegra da Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação de 2005:
- Joelson Dias é Advogado, sócio do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados, Brasília-DF. Ex-Ministro Substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Representante do Conselho Federal da OAB no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE). Membro da Comissão Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Conselho Federal da OAB. Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP)
- [1] Íntegra da Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação de 2005: https://www.itu.int/net/wsis/outcome/booklet/tunis-agenda_C.html