É fato que a vida de uma família que tem pessoas acometidas com alguma das mais de seis mil doenças raras até hoje catalogadas1 pode ser muito angustiante e desesperadora. A jornada dos pais e mães tem início com a identificação de sinais e sintomas que se manifestam geralmente nos primeiros anos de vida da criança. Daí em diante, costuma ser uma verdadeira saga com questionamento, busca por respostas e obter informações sobre a melhor linha de cuidados adequados. A maioria das doenças raras, sendo 80% de causa genética, são desconhecidas pela população e pela maioria dos profissionais da saúde, até mesmo médicos mais experientes. E as dificuldades não param por aí. Algumas delas apresentam manifestações clínicas semelhantes a doenças mais comuns e essa combinação de fatores conduz, geralmente, à confusão de diagnósticos.
É o caso da deficiência de descarboxilase de L-aminoácidos aromáticos ou deficiência de AADC, uma doença genética ultrarrara, que ocorre por falhas no metabolismo das substâncias químicas cerebrais responsáveis por transmitir a mensagem dos neurônios para o corpo, os neurotransmissores, como dopamina e noradrenalina, afetando a comunicação entre o cérebro e algumas células do corpo. Os sinais e sintomas têm início já nos primeiros meses de vida da criança, como diminuição do tônus muscular (hipotonia), atraso global no desenvolvimento e movimentos anormais de braços e pernas, assim como movimentos involuntários dos olhos.2,3 “Muitos pacientes, não investigados corretamente, acabam recebendo o diagnóstico de paralisia cerebral, mas há cuidados específicos para esta condição genética”, afirma a médica geneticista Carolina Fischinger, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, especialista em erros inatos metabólicos (EIMs), condições genéticas metabólicas, que, em sua maioria, são causadas pela deficiência de enzimas envolvidas na degradação de proteínas, carboidratos ou lipídeos.4,5
A especialista alerta que o diagnóstico da deficiência de AADC pode ser confirmado por meio de exames bioquímicos específicos e análise do DNA por painéis genéticos. Os testes genéticos podem ser realizados em pacientes com suspeita clínica ou mesmo com diagnóstico de paralisia cerebral, quando não há uma causa evidente para esse diagnóstico. Também é possível detectar precocemente por testes genéticos de triagem neonatal que analisa alterações genéticas antes mesmo do desenvolvimento de sintomas, chamada fase pré-sintomática. Para melhor chance de diagnóstico precoce, recomenda-se que eles sejam realizados junto com testes bioquímicos tradicionais (exames de sangue). Todos eles podem ser disponibilizados sem custo a partir de encaminhamento por médicos elegíveis, que têm como objetivo confirmar uma suspeita médica de alguma doença que já apresenta sintomas.
Em entrevista, a geneticista Carolina Fischinger explica mais sobre a importância do diagnóstico da deficiência de AADC. Confira:
Quais exames podem comprovar o diagnóstico da deficiência de AADC?
A confirmação do diagnóstico é feita por exame genético que pode detectar alterações no gene DDC. Nesse caso, o exame de sequenciamento do gene DDC ou Painéis de Sequenciamento de Nova Geração (NGS) que incluam esse gene são indicados. A deficiência de AADC é uma das mais de 320 doenças investigadas no chamado “Teste de triagem molecular”, que é o mais avançado de triagem neonatal genética. Ele pode ser realizado assim que a criança nasce e a doença pode ser identificada antes do início dos sintomas. Outros exames laboratoriais podem dar suporte ao diagnóstico, como punção lombar para medir os níveis das substâncias relacionadas a baixos níveis de neurotransmissores (dopamina e serotonina), e dosagem enzimática no plasma para medir a atividade da enzima AADC. Eventualmente no sangue dos pacientes pode ter prolactina aumentada, que pode ser um indicador de distúrbio de neurotransmissores.
Como a deficiência de AADC é herdada?
A grande maioria dos erros inatos do metabolismo tem padrão de herança autossômica recessivo, como a deficiência de AADC. O principal fator de risco é a recorrência dos genes do pai e da mãe, que podem ser portadores da alteração genética, sem saber. Quando eles têm um filho, ambos podem passar o gene com mutação genética. Este risco é de 25% a cada gestação. Em caso de história na família de afetados pela doença ou mesmo paralisia cerebral, recomenda-se o aconselhamento genético com médico especialista.
Como a deficiência de AADC se desenvolve na criança?
Os sinais e sintomas tem início já na primeira infância, geralmente nos primeiros meses de vida. Eles podem variar bastante, mas normalmente, as crianças com a doença apresentam atraso no desenvolvimento (motor, fala, movimentos), distúrbios do movimento (como distonia e hipocinesia), crises oculógiras (movimentos anormais dos olhos), hipotonia (fraqueza muscular), suor excessivo, ptose (queda da pálpebra superior), falta de energia, dificuldade de dormir, problemas cardiovasculares e gastrointestinais entre outros.
Como será o prognóstico de pessoas acometidas com deficiência de AADC?
A pessoa com deficiência de AADC terá um atraso geral do desenvolvimento de graus varáveis. Ela será cadeirante, dependente de assistência e pode necessitar e vias alternativas para alimentação como o uso do bótom de gastrostomia para receber a dieta, além de cuidados médicos, de fisioterapia, de fonoaudiologia e de terapia ocupacional ao longo de sua vida, que são importantes para manter uma melhor qualidade de vida. Com isso, há um impacto social relevante, pois a família se envolve bastante nos cuidados. Quase sempre, tem um pai ou uma mãe que não trabalha.
Quais os cuidados hoje existentes para estes pacientes?
Dependendo da evolução dos sinais e sintomas da doença, que pode variar para cada criança, se faz necessária uma abordagem multidisciplinar que envolve médicos especializados (neuropediatra, geneticista, pediatra, entre outros) bem como fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, psicólogo, entre outros.
Referências
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1 Ministério da Saúde. Disponível em: Link. Consultado em 27/09/22;
2 Wassenberg T, Molero-Luis M, Jeltsch K, et al. Consensus guideline for the diagnosis and treatment of aromatic l-amino acid decarboxylase (AADC) deficiency. Orphanet J Rare Dis. 2017;12(1):12. doi: 10.1186/s13023-016-0522-z.
3 Hwu WL, Chien YH, Lee NC, et al. Natural history of aromatic L-amino acid decarboxylase deficiency in Taiwan. JIMD Rep. 2018;40:1-6. doi: 10.1007/8904_2017_54.
4 Rice GM, Steiner RD. Inborn Errors of Metabolism (metabolic disorders). Pediatr Rev. 2016 Jan;37(1):3-15; quiz 16-7, 47.
5 Saudubray JM, Garcia-Cazorla A. Inborn Errors of Metabolism Overview: Pathophysiology, Manifestations, Evaluation, and Management. Pediatr Clin North Am. 2018;65(2):179-208.