- * Por Mônica Aderaldo
Há mais de 30 anos, foi determinado que todo recém-nascido no Brasil deve realizar o conhecido “Teste do Pezinho”, que tem como objetivo diagnosticar precocemente doenças que não apresentam sintomas no nascimento e, se não forem detectadas e tratadas cedo, podem causar sérios danos à saúde. Este rastreamento é o modo mais eficaz de diagnosticar a fenilcetonúria (PKU, na sigla em inglês), uma doença crônica rara causada por mutação genética em que os portadores não conseguem metabolizar a fenilalanina, levando ao acúmulo deste aminoácido que, em grandes quantidades no sangue, tem efeito tóxico. Desde a obrigatoriedade do exame, houve um grande aumento nos diagnósticos precoces de PKU, entretanto essas pessoas ainda têm um grande desafio pela frente: acesso ao tratamento adequado.
Os recém-nascidos que têm fenilcetonúria não apresentam sintomas, porém sem tratamento podem desenvolver sinais da doença logo nos primeiros dias de vida, como: problemas comportamentais ou sociais, convulsões, tremores ou espasmos nos braços e pernas, hiperatividades, alteração no crescimento, microcefalia e odor desagradável na respiração, pele ou urina, causado pelo excesso da fenilalanina no organismo. E, ainda, as crianças com a forma mais grave de PKU podem desenvolver deficiência intelectual permanente se não receberem tratamento e acompanhamento adequado por toda a vida.
Atualmente, o principal tratamento consiste na restrição do consumo de alimentos ricos em proteínas e que possuem altas quantidade de fenilalanina, como carnes, leites, ovos, grãos, pães, massas e chocolates, por exemplo. Logo, ao mesmo tempo que os pacientes conseguem evitar o consumo do aminoácido, acabam também se privando de consumir outros nutrientes importantes para a saúde. Com isso, foram criadas algumas fórmulas metabólicas específicas que suplementam esses nutrientes de acordo com as exigências de cada pessoa. Apesar de parecermos ter uma solução plausível para a restrição alimentar, infelizmente ainda precisamos lidar com alguns contratempos: a falta desses suplementos, ou seja, há mais demanda do que oferta, e há uma recorrência de casos de intolerância a lactose após o uso dessas fórmulas, restringindo o seu uso em certos casos.
Fora a possibilidade do manejo da PKU pela dieta alimentar, existe também outra forma de tratamento já aprovada pela Anvisa, a medicação KUVAN (dicloridrato de sapropterina), indicada para pacientes a partir de 30 dias de vida. Ela consegue controlar a patologia em 30% dos casos, evitando assim complicações nas funções motoras e cognitivas nos pacientes, além de diminuir, mesmo que um pouco, a restrição alimentar. Porém, nos deparamos com mais um problema: desde 2018, a orientação contida no Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica (PCDT) do Ministério da Saúde para a doença recomenda o seu uso apenas para mulheres portadoras da condição em caso de gravidez. Isso porque durante a gestação, o excesso de fenilalanina no cérebro é tóxico também para o feto, podendo resultar em microcefalia e deficiência intelectual mesmo quando o bebê não tem a doença.
Na tentativa de rever o atual PCDT e ampliar a disponibilidade dessa terapia medicamentosa na rede pública, foi realizada uma submissão na Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), que acabou recebendo um parecer negativo em que a justificativa foi pautada pela falta de estudos e o custo elevado da medicação.
Sim, sabemos que por se tratar de uma enfermidade rara, estamos lidando com populações pequenas, o que dificulta termos um grande volume de evidências. Já em relação ao custo, não são todos os pacientes elegíveis ao medicamento, o que diminui a quantidade de pacientes que utilizariam a terapia. Ora, com o conhecimento de que quanto maior a concentração do aminoácido no sangue, maior a gravidade da doença e urgência no tratamento é inaceitável que uma pessoa seja privada de receber o medicamento que deveria ser fornecido por toda a vida, uma vez que estamos falando de uma doença crônica e que requer acompanhamento vitalício.
Assim, infelizmente os pacientes que não se enquadram neste perfil descrito no PCDT ficam desatendidos e precisam seguir uma dieta alimentar extremamente restrita e que, sem a suplementação adequada, se torna prejudicial. O tratamento medicamentoso acaba se tornando uma esperança para essas pessoas, pois com ele conseguem diminuir a restrição de alimentos e ter mais qualidade de vida. Ter acesso a um cuidado adequado é um direito de todos, ainda mais em um cenário que já conseguimos ter diagnósticos precoces, pois de nada adianta identificarmos a doença e não conseguirmos controlá-la.
- * Mônica Aderaldo, presidente da Federação das Associações de Doenças Raras do Norte, Nordeste e Centro Oeste (Fedrann)