De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil é o segundo país no mundo em número de transplantes de órgãos. Em 2022, por exemplo, foram mais de 26 mil cirurgias para reposição de órgãos e tecidos, sendo a mais comum a de transplante de córnea (13,98 mil). Mas a rejeição do órgão costuma oscilar ao redor de 15% em diversos centros transplantadores do país e, ainda que os pacientes possam recuperar a visão com um novo transplante, as chances de sucesso em uma nova cirurgia são menores a cada procedimento.
Para estes casos complexos, a solução costuma ser a ceratoprótese, conhecida também como córnea artificial. O modelo mais utilizado no mundo é a ceratoprótese de Boston, que pode ser montada na própria córnea do paciente. A importação destas próteses ocorre através de projetos de pesquisa, ou por via humanitária, aos pacientes que precisam do tratamento – embora existam entraves legais no registro do tratamento junto à Anvisa. Por isso, pesquisadores do Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo, decidiram criar uma prótese 100% nacional.
Composta de material biocompatível, polímero de acrílico (PMMA) e titânio 3D impresso, essa prótese possui outros diferenciais: tem custo reduzido e se adapta à córnea danificada do próprio paciente, dispensando doadores. Liderado pelos docentes Paulo Schor e José Álvaro Gomes Pereira, e pelo pós-doutorando Otávio Magalhães, o projeto visa solucionar tanto o problema da importação quanto o da rejeição. Tais próteses, capazes de se integrar perfeitamente ao tecido receptor, diminuem a possibilidade de rejeição ao transplante. São, por isso, indicadas para pessoas com histórico de múltiplas rejeições ao transplante, ou para casos em que há grande chance de isso acontecer, sendo encaixada em uma córnea doada que é implantada no paciente.
De acordo Magalhães, oftalmologista da EPM/Unifesp, as chances de retenção da ceratoprótese nacional são altas, especialmente em pacientes que sofreram queimaduras químicas, insuficiência limbar e vascularização, considerados casos de alto risco para rejeição. “O olho tem um mecanismo próprio de defesa que isola quaisquer corpos estranhos. Não se trata de rejeição sanguínea, pois não há vasos sanguíneos que chegam na região. Quando há uma queimadura química ou vascularização da área, o sistema imune do paciente identifica a córnea estranha e a ataca”, detalha o pesquisador.
A queimadura química nos olhos pode ser causada por diversos eventos, como acidentes domésticos envolvendo crianças e uso de cosméticos. Porém, a maioria das vítimas são pessoas que sofreram acidentes de trabalho, como trabalhadores da indústria química. Além disso, o transplante de córnea acontece também em pessoas acometidas por herpes na região ocular. “Pacientes assim podem fazer três ou quatro transplantes e só tem rejeição, deixando cicatrizes e aumentando a vascularização, diminuindo cada vez mais as chances de sucesso da cirurgia”, relata Magalhães.
O pesquisador relata ainda que “em um paciente com queimadura química, por exemplo, a chance de um transplante de córnea ter sucesso é menor que 10%. Com uma ceratoprótese, porém, essa chance aumenta para perto de 60%”. Mas os pesquisadores frisam que a ceratoprótese não substitui o transplante de córnea, e deve ser considerada apenas um complemento. “Ela é destinada justamente para casos em que o prognóstico do transplante de córnea é baixo. Ou seja, para uma pequena parcela dos pacientes que terá poucas chances de sucesso do transplante de córnea”, complementa Magalhães.
Já o professor Paulo Schor contextualiza que a pesquisa foi desenvolvida com o apoio da Agência de Inovação Tecnológica e Social (Agits) da Unifesp, mas que a prótese produzida no Brasil ainda não tem registro da Anvisa. “Não há cura para cegueira e ainda não temos essas ceratopróteses para fornecer aos pacientes. Para que isso se torne realidade, precisamos de apoio de agências fomentadoras, como a Fapesp, e do próprio Ministério da Saúde. Neste momento, temos o interesse das empresas MedPhacos e Plenum Bioengenharia no co-desenvolvimento, e a divisão de propriedade intelectual com a Unifesp. O mercado é pequeno e as vítimas desse tipo de trauma têm menos recursos monetários, então acredito que esse apoio virá de um olhar de prioridade social pois, ainda que seja uma condição relativamente rara, permanece sem solução no nosso meio”, finaliza o docente da EPM.
Fonte: Valquíria Carnaúba – DCI / Unifesp