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OPINIÃO – O CANTO DA SEREIA: Compras de tecnologias assistivas pelo Poder Público e seus aspectos jurídicos

ByJornalismo Diário PcD

nov 15, 2023
OPINIÃO - O CANTO DA SEREIA: Compras de tecnologias assistivas pelo Poder Público e seus aspectos jurídicos. Por Agnaldo Borcath
  • * Por Agnaldo Borcath

A Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB) divulgou uma carta aberta alertando a comunidade e o poder público sobre os riscos causados à alfabetização e escolaridade de crianças e adolescentes cegos e com baixa visão pela utilização de recursos de forma inadequada. De acordo com o documento, gestores e órgãos municipais e estaduais estão aplicando dinheiro público na compra de recursos técnicos que são ofertados como substitutos do sistema de leitura em Braille, dos materiais ampliados e outros formatos acessíveis.

De plano, o assunto me despertou interesse. Primeiro, porque sou pessoa com baixa visão e, desde a pré-escola, os materiais ampliados sempre foram indispensáveis para meu processo de formação. Aliás, na minha época, acessibilidade se construía na “marreta”. As professoras da Fundação de Assistência à Criança Cega, em Curitiba, onde recebi acompanhamento no período de alfabetização, por não disporem de recursos tecnológicos, copiavam os textos das apostilas com caneta hidrocor para que eu pudesse enxergá-los.

Segundo, porque sou pai de três crianças com deficiência visual, o que não requer maiores explicações quanto à minha preocupação com o tema “riscos à alfabetização e escolaridade de crianças cegas e com baixa visão”.

Terceiro, porque sou advogado com deficiência visual, com atuação de mais de 10 anos no setor público como parecerista em processos licitatórios. Assim, senti-me compelido a emprestar meus conhecimentos à causa que para mim não é só mais uma causa, é a minha causa.

Portanto, escrevo este artigo com a finalidade de apresentar alguns aspectos jurídicos implicados nessas aquisições realizadas pelos órgãos da administração pública e recentemente trazidas a público. Ao final, espero que o texto desperte a atenção dos órgãos de fiscalização (Conselhos de Direitos, Ministério Público e Tribunais de Contas, etc.) e dos agentes públicos, em geral, responsáveis por contratações públicas (gestores, pregoeiros, assessores, etc.).

O primeiro ponto a se observar é que todo ato administrativo precisa ser devidamente motivado. Ou seja, o administrador deve indicar os fundamentos de fato e de direito que o levam a adotar qualquer decisão no âmbito da Administração Pública. Cabe a ele demonstrar a correlação lógica entre uma situação existente e as providências adotadas.

Em se tratando de contratações públicas, a nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) deu tratamento especial ao princípio da motivação, especialmente por se tratarem de atos administrativos que impactam de forma direta o interesse público. Por essa razão, o § 1º do art. 18 da citada Lei, exige motivação detalhada para a realização do estudo técnico preliminar, antecedendo a toda e qualquer contratação.

Desta forma, antes de o gestor público pensar em adquirir qualquer equipamento que se destine à melhoria nas condições de ensino e aprendizagem das pessoas com deficiência, é necessário que realize estudos técnicos para verificar a compatibilidade, a adequação e a eficácia da tecnologia assistiva. De igual modo, a justificativa da compra pretendida deve estar fundamentada em avaliação prévia e conjunta, envolvendo a participação de equipes multidisciplinares, das instituições de ensino, das entidades representativas das pessoas com deficiência, das famílias e, sobretudo das próprias pessoas com deficiência. Tais diligências buscam verificar as necessidades educacionais específicas de cada um dos alunos com deficiência da rede pública para a definição da espécie de apoio e de recursos que devem ser endereçados a cada um deles.

O problema é que, em muitos casos, o gestor se sente tão seduzido pela propaganda do produto, que considera ser suficiente justificar a compra com o texto criado pelo próprio vendedor da tecnologia. Até porque, o marketing também acaba sendo útil para a capitalização política nas cerimônias de entrega e nas publicações oficiais, quando o político se sente confortável em vender o “peixe” conforme comprou. Por outro lado, não seria de se estranhar se por trás de muitas destas aquisições houvesse lobbys a favorecer, com enriquecimento ilícito, os envolvidos. A hipótese é plausível, especialmente considerando a forma descuidada como as compras vêm sendo realizadas. Chega parecer descuido intencional.

Porém, se a Administração Pública não atentar para este dever de cautela, além de colocar em risco o processo de escolarização das crianças e adolescentes com deficiência, poderá incorrer em ilegalidade na aplicação do dinheiro dos contribuintes.

Outro ponto a merecer atenção, é que grande parte das aquisições de tecnologias voltadas à acessibilidade se realiza por meio de compra direta. Em consulta ao site de certa empresa, que afirma ser representante exclusiva de um equipamento que se acopla à haste dos óculos e promete milagres aos cegos, se verifica que um dos argumentos para a venda da tecnologia é justamente que “os gestores públicos podem adquirir o produto sem necessidade de licitação, de acordo com a lei”.

Com efeito, de acordo com o artigo 74, inciso I, da Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), não se exige procedimento licitatória para “aquisição de materiais, de equipamentos ou de gêneros ou contratação de serviços que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivos”. Parece convidativo, não é? Porém nesse caso também é importante cautela por parte do gestor público para não se deixar seduzir pelo canto da sereia.

Aqui, como no caso das compras por meio de processo licitatório, é preciso também atentar para o princípio da motivação. Porém é necessária atenção extra. De acordo com entendimento do Tribunal de Contas da União, expresso no acórdão 1547/2007, as compras por inexigibilidade de licitação somente podem acontecer nos casos em que o objeto da contratação apresenta natureza singular. Portanto, a autoridade que demanda a compra deve ter certeza de que somente a aquisição do objeto especificado é capaz de atender as necessidades que motivam a contratação, sob pena de não se admitir como inexigível o processo licitatório.

Veja-se que, existem variadas tecnologias, em muitos casos mais avançadas do que as que estão sendo comercializadas, que apresentam soluções complementares, acessíveis e eficazes para as necessidades das pessoas cegas e com baixa visão. Grande parte dessas tecnologias está disponível de forma gratuita para computadores, tablets e smartphones e, não raro “desempenham funções mais avançadas do que as que muitos recursos caros prometem alcançar”. Ora, não existe fundamento legal para buscar uma solução que gere despesas aos cofres públicos, quando existem soluções sem custos que atendem de forma mais adequada às necessidades das pessoas com deficiência. Certamente, o gestor que não atentar para estes fatos, ferirá de morte os princípios elementares da administração pública, especialmente o da eficiência, além de lhe ser imputada a má aplicação do dinheiro público.

Vale dizer, por fim, que a Constituição Federal, em seu artigo 8º, e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, no artigo 9º, impõem ao Estado, representado pelos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), o dever de assegurar às pessoas com deficiência a efetivação dos direitos a inclusão, a acessibilidade, a educação, o acesso aos avanços científicos e tecnológicos, entre outros direitos e garantias fundamentais. E o termo “efetivação” (ato de efetivar) não foi introduzido do texto constitucional por mera causalidade. Não se efetivam direitos das pessoas com deficiência sem planejamento e avaliação das reais necessidades dos destinatários das políticas públicas; sem ouvir as pessoas interessadas e que podem contribuir para a eficiência dos investimentos públicos. Não se efetivam direitos das pessoas com deficiência com tecnologias de alto custo que pouco ou nada contribuem com a inclusão e acessibilidade. Não se efetivam direitos das pessoas com deficiência com compra e venda de ilusões

  • * Agnaldo Borcath é Jornalista e Advogado Especialista em Direito Administrativo. Atua como Assessor Jurídico no município de Almirante Tamandaré, no Paraná. Ele tem baixa visão

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