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Reportagem do Esporte Espetacular: do capacitismo à presunção de má-fé

ByJornalismo Diário PcD

dez 15, 2023
Opinião: Reportagem do Esporte Espetacular: do capacitismo à presunção de má-fé * Por Agnaldo Borcath
  • * Por Agnaldo Borcath

OPINIÃO

O Esporte Espetacular da Rede Globo exibiu no último domingo, 10, reportagem com denúncias de supostas irregularidades envolvendo atletas paralímpicos brasileiros. Segundo a matéria, três competidores com deficiência visual do atletismo estariam competindo em categorias incompatíveis com suas deficiências. 

Sem embargo de futuras averiguações, quero compartilhar algumas impressões sobre o caso. 

A reportagem

No atletismo, atletas com deficiência visual competem em três categorias: T11 (para atletas cegos ou com resíduo visual), T12 e T13 (para atletas com baixa visão). A reportagem da TV Globo, por meio de vídeos analisados por especialistas e de depoimento de atletas denunciantes, procurou demonstrar que os medalhistas em Paralimpíadas, Lucas Prado, Silvania Costa e Ricardo Costa, se fazem passar por cegos para obterem melhores resultados em competições, de acordo com seus índices individuais.

A reportagem aponta que as apurações das denúncias se iniciaram em 2020. Desde então, teriam sido ouvidas muitas pessoas que fazem parte do Movimento Paralímpico Brasileiro, com o monitoramento do comportamento dos três campeões denunciados, por meio de redes sociais, vídeos encaminhados por terceiros e imagens capturadas pela própria reportagem. 

Os vídeos mostram Lucas, Silvânia e Ricardo em momentos diversos (caminhando por espaços públicos, embarcando em veículos, andando de bicicleta, etc.). Para os especialistas ouvidos na matéria, nas ações registradas, os três atletas estariam agindo de maneira incompatível com uma pessoa cega. Outros atletas com deficiência visual afirmam ao Esporte Espetacular que os denunciados agem nas competições e em entrevistas de forma diferente do comportamento apresentado no dia-a-dia.

A resposta do CPB e dos atletas citados na reportagem

O Comitê Paralímpico Brasileiro se manifestou, por meio de nota, no mesmo dia da divulgação da reportagem, afirmando não ser conivente com atos contrários à justiça no esporte.  Reafirmou que a instituição “preza pela ética em todo seu processo de gestão e administração”, seguindo as diretrizes de classificação do Comitê Paralímpico Internacional, expostas no “Código Internacional de Classificação e dos regulamentos de classificação específicos por modalidade ou tipo de deficiência”. E que cabe aos especialistas em classificação para atletas com deficiência visual o estabelecimento da classe de cada competidor, com base em exames clínicos e análise de laudos médicos. “Nem os atletas e nem o CPB têm poder de definir em qual classe cada atleta competirá”. 

A nota aponta ainda, que os atletas citados na reportagem foram submetidos a várias classificações internacionais e que houve manifestações contrárias do CPB quanto alguns resultados. Por fim, o documento acusa a reportagem de tendenciosa, por ter solicitado entrevista “de forma genérica”, não concedendo ao CPB o acesso às imagens e informações.

Lucas Prado respondeu às denúncias do Esporte Espetacular em vídeo postado em seu Instagram. O atleta diz que passou por várias juntas médicas e que todas chegaram sempre à mesma conclusão. “Todos os exames que vocês pensarem que tem na medicina oftalmológica eu fui sujeito a fazer. Não foi só um médico que fala que eu sou cego”, afirma o corredor.

Ricardo Costa ainda não se pronunciou. Já Silvânia reproduziu na tarde de domingo, 10, os vídeos de sua entrevista exibida na própria reportagem contendo trechos que a Globo não mostrou. Nela, a corredora afirma ter entrado no movimento paralímpico como T12 e que nas competições seguintes o Comitê Paralímpico Internacional mudou sua classificação para T11. Ela diz ainda, que sua acuidade visual apresenta variações. Há dias em que consegue enxergar um pouco melhor do que em outros. Além dos trechos que foram exibidas na reportagem, Silvânia afirma que sua dificuldade visual começou aos 11 anos de idade. E reitera que os exames oftalmológicos apontam que ela não se enquadra na classificação de T12 ou T13.

Minha opinião

As duas profissões que abracei, de jornalista e de advogado, me orientam no sentido de que é sempre importante buscar todos os lados de uma história, pois, é mais fácil se aproximar da verdade pelo contraditório do que pela percepção de apenas um lado. Outra coisa que aprendi com a experiência, não só profissional, mas de vida, é que a precipitação pode conduzir a erros de avaliação com potencial de causar danos irreparáveis. A prudência é, via de regra, boa conselheira.  

Dito isto, é preciso reconhecer que, embora a reportagem do Esporte Espetacular tenha sido bem produzida, ela se mostra absolutamente enviesada. Primeiro, porque foram escolhidos especialistas que corroboram as acusações, porém não se procurou ouvir nenhum profissional que participou da classificação dos atletas denunciados. Não se pode deixar de reconhecer a autoridade dos médicos ouvidos pela reportagem, da mesma forma que se impõe considerar a autoridade dos inúmeros profissionais que chancelaram as inúmeras classificações a que os atletas denunciados foram submetidos. Contudo, em três anos de apuração, sequer foram procurados os profissionais que assinaram os laudos analisados pelos classificadores.

Segundo, as imagens dos atletas em determinadas atividades do dia-a-dia são meros recortes da realidade. Não se pode avaliar por situações episódicas, a realidade complexa do cotidiano de qualquer pessoa com deficiência. Já presenciei vários casos em que a deficiência visual de uma pessoa foi contestada em decorrência de algumas habilidades por ela apresentadas, tanto na prática esportiva, quanto fora dela. A propósito, quanto a este quesito, a reportagem mostra um viés bastante capacitista, pois induz à conclusão de que a pessoa cega não pode gozar de autonomia sequer para embarcar, sem auxílio de terceiros, em um automóvel.

Terceiro, a reportagem deixa de considerar a existência de regras, políticas e diretrizes de classificação que são pautadas pelo Comitê Paralímpico Internacional, por meio de regulamentos específicos de classificação por modalidade ou tipo de deficiência e do Código Internacional de Classificação. Em face das supostas irregularidades apontadas, a reportagem deveria abordar tecnicamente o regramento internacional adotado. Tal questionamento, inclusive, teria de ser com base em ciência, jamais em achismos. Todavia a matéria passou ao largo de questões mais técnicas para trilhar o caminho das especulações.

Por fim, se por um lado reconheço a importância do jornalismo para o fortalecimento da democracia, por outro, entendo que nenhuma matéria jornalística pode ser tratada como sentença definitiva contra quem quer que seja. Neste caso, as carreiras de três atletas vitoriosos estão sendo colocadas em cheque pelo tribunal da opinião pública, com base em ilações. Condena-se sem processo que possibilite aos envolvidos o contraditório e a ampla defesa. Tal postura pode causar danos irreparáveis na vida de três pessoas com deficiência. 

Ora, se há irregularidades, que sejam apuradas adequadamente e se responsabilize os eventuais culpados. Porém jamais se pode partir para a condenação sumária de três atletas, pessoas com deficiência, com base em presunções. A boa fé é presumível, a má-fé jamais se presume. 

  • * Agnaldo Borcath é Jornalista, Advogado Especialista em Direito Administrativo e atua como assessor jurídico no município de Almirante Tamandaré, Paraná. Tem baixa visão.

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