OPINIÃO
- * Por Mara Gabrilli
Desde que se tornou mãe, Roberta, 28, nunca mais se olhou no espelho. Arrumar o cabelo, se maquiar, fazer as unhas, tudo isso ficou muito distante quando passou a cuidar em tempo integral da filha diagnosticada com paralisia cerebral severa. Para além dos cuidados com a imagem, essa mãe precisou abrir mão do trabalho – e a faculdade que ansiava fazer um dia tornou-se um sonho engolido.
Esse é o retrato de milhares de brasileiras cujo papel de cuidar é invisibilizado. Falamos de mulheres que em sua maioria esmagadora carregam filhos sozinhas, porque na vida delas não existiu um pai ou redes de apoio, seja familiar ou governamental. Os homens, salvo honrosas exceções, costumam abandonar a casa quando se deparam com um diagnóstico de deficiência na família.
Essas brasileiras, de maioria pobre, pagam a conta de viver em uma sociedade machista de um país que ainda engatinha na oferta de políticas públicas de reabilitação e que delega apenas às famílias a responsabilidade quanto aos cuidados na vida diária.
Tal cenário desanimador ganhou holofotes em novembro de 2023, quando a redação do Enem propôs que estudantes discorressem sobre “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Volto a esse tema agora, no início de 2024, porque temo que, mais uma vez, ele caia na invisibilidade e as mulheres, em geral as principais cuidadoras, sejam esquecidas.
A situação mais comum é: a mãe para de trabalhar para cuidar do filho com deficiência, as despesas da família só aumentam e a renda familiar diminui drasticamente. Ou ainda, quando um familiar idoso, seja pelo envelhecimento natural ou pelo susto de um AVC ou Alzheimer, necessita de cuidados, geralmente é a mulher – uma filha, nora ou neta – que para de trabalhar para assumir essa responsabilidade. Ocupada com o “invisível”, a mulher adoece e fica privada de tempo e recursos necessários para conquistar autonomia financeira, permanecendo presa em um ciclo de exploração, abandono e exclusão social.
Diante da urgência de um quarto elemento na configuração da Seguridade Social – o de cuidados –, além da saúde, Previdência e assistência social, três senadores se uniram há cerca de quatro anos para criar um projeto de lei com a proposta de uma “Política Nacional do Cuidado”. Os senadores Eduardo Gomes, Flávio Arns e eu nos debruçamos sobre o tema e realizamos duas pesquisas em parceria com o DataSenado com pessoas cuidadas e cuidadores.
Os resultados estão contemplados no Projeto de Lei 2.797, que protocolamos em novembro de 2022, e busca dar respostas aos anseios da sociedade e estipula legislação que dê aos cuidadores familiares e profissionais apoio no desenvolvimento de seu trabalho. Sob relatoria do senador Paulo Paim, visamos a garantir uma política de Estado que regulamente e promova ações estratégicas para assegurar o bem-estar físico, psicológico e social de pessoas em situação de dependência e seus cuidadores familiares ou profissionais.
No projeto propomos que o governo forneça cuidadores custeados pela assistência social. Julgamos de extrema importância a criação de um plano de inclusão previdenciária dos familiares, em sua ampla maioria mulheres, que ficam impossibilitados de trabalhar, dedicando-se exclusivamente a parentes que têm impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, do intelecto e da mente, e que têm limitações para exercer as atividades básicas do dia a dia.
O texto institui o auxílio-assistência para todos os segurados da Previdência Social, com adicional de 25% para trabalhadores e aposentados com deficiências que dependam de cuidados de terceiros para auxiliá-los na manutenção de condições dignas de vida, saúde e segurança.
Não podemos esquecer que o nosso país caminha para uma mudança demográfica, o que revela um quadro futuro de alteração no desenho econômico nacional. Segundo projeções baseadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), se as atividades de cuidados fossem consideradas no cálculo que estima a geração de renda no País, equivaleria a cerca de 11% do PIB. O número de pessoas idosas tende a dobrar nas próximas décadas. Além disso, o número de pessoas que têm como profissão serem cuidadores de idosos saltou entre os anos de 2004 e 2017 de 4.313 para 34.051.
A realidade é que todos nós precisamos de cuidados para existir. E, se hoje você é uma pessoa adulta e alfabetizada lendo este texto, é porque alguém desempenhou horas de trabalho de cuidado com alimentação, vacinação, remédios, limpeza e higiene, educação, entre diversas outras funções por horas a fio para cuidar de você. Pessoas cuidadas e pessoas que cuidam devem ser apoiadas.
Passou da hora de o Brasil ter uma política de cuidados e regulamentar a profissão de cuidador, que, vale dizer, também pode – e deve – ser exercida por homens. Essa é uma responsabilidade do Estado, não da condição feminina.
* Mara Gabrilli é Publicitária, psicóloga, senadora pelo PSD-SP, tetraplégica, foi secretária da Pessoa com Deficiência da Prefeitura de São Paulo, vereadora na Câmara Municipal e deputada federal pelo Estado de São Paulo por dois mandatos consecutivos.