OPINIÃO
* Por Paula Ayub – Entrevista com Fernanda Ogna
Fernanda Ogna, 40 anos, mãe de autista, preta, periférica, solo, uma ‘mãe SUS’.
Fernanda participa do grupo do TEAMM-UNIFESP e Instituto Noos para familiares de autistas até 15 anos.
Vibrante, falante, denuncia sempre tudo o que vive. Inicia seu discurso com voz de luta e aos poucos se embarga de emoção pela dor das palavras.
Moradora da Vila Prudente, se auto intitula ‘um imã de mães atípicas’. Conhece muitas e conta suas histórias de dor e muito, mas muito sofrimento.
Seu filho de nove anos tem seletividade alimentar, só como batata. Por vezes, ela só consegue servir arroz e feijão, mas ele não come arroz e feijão. Mora ‘de favor’ na casa da mãe, criando sua netinha, filha de sua filha dependente química.
Fernanda chora, se culpa pela sua falta de poder aquisitivo para custear o tratamento de seu filho e por morar ‘de favor’ com sua mãe. Não trabalha; é sobre aquele velho circulo vicioso que tanto se ouviu falar e, para surpresa de nossos governantes ELE AINDA EXISTE: A escola não fica com o garoto, o CAPS não fica com o garoto e ela não consegue trabalhar. Rede de apoio? Não, não tem.
E. ficou afastado da escola em 2022 após sofrer violência física de seus colegas. Ele relatava para sua mãe, a escola negava. Com muitos hematomas pelo corpo, fez Boletim de Ocorrência e foi ao IML fazer exame. O garoto ficou afastado da escola e fazendo tratamento no CAPS, de onde teve alta. Para recair novamente e ser afastado da escola de novo.
São 5 crianças PCD na sala de E. As mães precisam ir trocar as fraldas dos filhos e, até dar a comida para eles. Para a seletividade alimentar de E., Fernanda solicitou na secretaria de educação banana e batata para ele e foi negado.
Na mesma escola, um jovem autista de 16 anos sofreu tanta violência que em uma crise, ficou nu e subiu no muro da escola. A polícia foi chamada e, sem a intervenção de Fernanda, iriam atirar com a arma de choque para que ele saísse do muro.
A diretora da escola pergunta: “o que você quer da escola? – quero um acompanhante. O que você quer é impossível”. Tá certo isso? É impossível?
Que mundo é esse que Fernanda descreve? É o mesmo que os políticos dizem que vão salvar. O mesmo que fazem os políticos assinarem inúmeros Projetos de Lei e decretos que nunca saem do papel.
Não é o mundo dos políticos do dia 02 de abril. Dia 02 de abril eles vão até na caminhada. E depois esquecem e tudo volta a ser como sempre foi.
Dois anos, Fernanda está tentando receber do Estado a Rispiridona liquida que seu filho toma há 2 anos: “Você não viu que o médico preencheu o formulário errado?” Foram 4 formulários e, cada formulário precisa agendar hora e esperar. Aguarda um neurologista desde 2019; “é consulta de retorno”.
“Teve uma mãe que não aguentou e se matou. Colega minha.”
“A gente cansa de ver nossas dores serem usadas contra a gente. Parece que ser pobre é castigo porque fazemos tudo errado, porque não temos dinheiro”.
Mães como Fernanda aprendem a ser invisíveis, a se calarem para que seus filhos não apanhem e não sofram; aprendeu que criar inimizade é o pior castigo. Mas ela diz que já ‘passou da hora de romper com esse medo”. Ela quer dignidade.
Apenas dignidade.
- * Paula Ayub é psicóloga clínica, terapeuta de família, diretora do Centro de Convivência Movimento – local de atendimento para autistas –, autora de vários artigos e capítulos de livros, membro do GT de TEA da SMPD de São Paulo e membro do Eu me Protejo (Prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2020, na categoria Produção de Conhecimento).
FONTE: Artigo originalmente publicado em https://www.canalautismo.com.br/