OPINIÃO
- * Por Ana Cláudia M. de Figueiredo
O tema do Dia Internacional da Síndrome de Down (21/3) deste ano é “Chega de estereótipos”!
O tema é muito oportuno porque pessoas com síndrome de Down, ou trissomia do cromossomo 21 (T21), experimentam, ao longo da vida e nas mais diversas áreas, todo o tipo de estereótipos.
Falar sobre estereótipos é falar sobre capacitismo, que é um termo que começou a ser abordado em nosso país há menos de uma década e ganhou popularidade rapidamente principalmente por ter se mostrado um argumento eficaz no combate a processos de exclusão social de pessoas com impedimentos de natureza física, sensorial, intelectual ou psicossocial.
O capacitismo significa a discriminação por motivo de deficiência, mas abrange também o preconceito, que, diferentemente da discriminação, não se materializa em uma ação explícita. O preconceito é uma compreensão que assumimos em relação a certas pessoas antes de interagirmos com ela ou de conhecê-la. Dessa compreensão pré-definida decorrem os estereótipos, que denominamos popularmente de rótulos. Embora essa compreensão seja individual, reflete as ideias que circulam na sociedade e na cultura em que vivemos.
A proibição de qualquer forma de discriminação encontra-se prevista em vários trechos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e na Constituição e está tipificada na Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência, ou seja, a Lei impõe pena de reclusão (encarceramento) de 1 a 3 anos para quem praticar esse crime.
Ainda assim a discriminação por motivo de deficiência é praticada todos os dias, nos mais variados espaços e contextos, como o contexto familiar. Temos visto com frequência o capacitismo recreativo, que é o praticado por humoristas. Ocorrendo a discriminação nos meios de comunicação, a pena de reclusão pode chegar a 5 anos.
O capacitismo decorre do entendimento de que as pessoas com deficiência são não iguais, menos humanas, incapazes de gerir as próprias vidas, são inferiores ou incompletas quando comparadas a pessoas sem impedimentos.
A crença de inferioridade dos corpos com impedimentos é parte estrutural da nossa cultura.
Além de ser estrutural, o capacitismo é também estruturante, uma vez que determina as convicções da sociedade e dos poderes públicos a respeito dessas pessoas. Condiciona igualmente a compreensão que as pessoas com T21 têm sobre si mesmas, fortalecendo um círculo vicioso a seu respeito: a sociedade produz ações e falas que refletem as crenças negativas que tem sobre as pessoas com T21 e essas acabam sendo limitadas em suas habilidades e competências. O ocultamento ou restrição do seu potencial, por sua vez, contribui para a consolidação de crenças limitantes da sociedade.
Como a maioria sabe, tenho uma filha com T21, a Jéssica Mendes, que foi quem mais me ensinou sobre capacitismo. Um fato que marcou sua vida – e as nossas – foi quando pessoas do próprio movimento, no qual ela atua há mais duas décadas, sugeriram que ela, que é fotógrafa, deixasse de atuar na fotografia, porque ela não conseguiria dominar todas as técnicas necessárias para o exercício da profissão. Essa opinião a impactou de tal maneira que ela, apesar de ter concluído um curso superior de fotografia e trabalhar há mais de 10 anos na Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência fazendo fotos, ficou sem conseguir fotografar, fora do trabalho, por mais de 3 anos. Ela dizia que não conseguia se ver como fotógrafa.
Esse exemplo mostra como os rótulos, geralmente negativos, podem condicionar a compreensão que as pessoas com T21 têm sobre si mesmas, prejudicando suas vidas.
O combate aos rótulos atribuídos a essas pessoas é necessário porque impedem que essas sejam conhecidas e reconhecidas em suas singularidades, habilidades e competências e tenham seus interesses atendidos e suas escolhas respeitadas.
E esse combate para ser efetivo precisa ser, importa dizer, interseccional, devendo abranger também a opressão gerada pelo gênero, classe social, raça, idade entre outros marcadores sociais.
O enfrentamento ao capacitismo – que consiste em barreiras atitudinais à inclusão social de pessoas com deficiência – contribuirá para o fim da opressão experimentada cotidianamente por pessoas com T21; para a emancipação dessas pessoas em todas as áreas da vida; para o reconhecimento da sua autonomia, que inclui a liberdade de fazer as próprias escolhas; para o respeito aos seus interesses e preferências; para a ampliação das oportunidades de sua participação social e política; para o fortalecimento da representatividade desse grupo e, consequentemente, para a redução do capacitismo que ainda insiste em permear as relações na sociedade.
Eu e você podemos nos engajar nesse enfrentamento e contribuir para um cenário efetivamente inclusivo, em que pessoas com T21 certamente terão seus projetos de vida viabilizados e seus sonhos concretizados.
Basta não silenciar diante das opressões.
Basta contestar os estereótipos e rótulos impostos a elas diariamente.
Basta elevar as expectativas e crenças as seu respeito.
Basta assumir, como sugerido pela ONG italiana Coordown, que essas pessoas são capazes e têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais garantidos a outras pessoas. Assim, pode ser que consigam ter oportunidades asseguradas, o seu valor reconhecido e sua dignidade humana respeitada.
(1) Parte deste texto foi publicizado hoje, 21/3, por ocasião da minha fala no Senado Federal, na Sessão Especial, solicitada pelo Senador Romário, para conscientização sobre o Dia Internacional da Síndrome de Down.
* Ana Cláudia M. de Figueiredo é Advogada, mestranda na pós-graduação em Direitos Humanos da UnB e mãe da Jéssica Mendes de Figueiredo.
IMAGEM: Co-fundadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In), Ana Cláudia Figueiredo, discursou à tribuna
Crédito: Geraldo Magela/Agência Senado›