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  • seg. jul 1st, 2024

Como fica o clima escolar após as enchentes no RS?

Como fica o clima escolar após as enchentes no RS? OPINIÃO - * Por Adriana Pagaime e Adriano Moro

Opinião

  • * Por Adriana Pagaime e Adriano Moro

Diante do alarmante cenário que assolou o estado do Rio Grande do Sul, como podemos refletir sobre o clima escolar, que envolve desde as relações interpessoais até a estrutura física da instituição de ensino? Ou melhor, sobre a reconstrução de um ambiente que seja acolhedor, cuidadoso, seguro e acessível, sendo que todas as pessoas, sem exceção, foram impactadas de alguma maneira? 

A recente pandemia parecia nos ter apresentado os maiores desafios, que culminaram na necessidade urgente de se pensar, além das relações, os papéis dos governos, do poder público, da sociedade civil, da comunidade escolar, dos adultos e crianças da escola, no que se refere à necessidade de recomeçar a partir de contextos e cenários inimagináveis. Naquela ocasião, vimos também que, mesmo que algo afete a todos, traz consequências mais severas para determinados grupos, como os mais pobres, as pessoas negras e as pessoas com deficiência. Estas serão o foco deste nosso diálogo.  

No pós-pandemia, na fase de retorno paulatino às aulas presenciais, quem atua com o público da educação especial — pessoas com deficiência, Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e altas habilidades/superdotação — presenciou mais um momento histórico de reprodução de capacitismo e exclusão, quando os sistemas de ensino foram orientados a deixar as crianças com deficiência como as últimas a retornarem, por razões que já deveriam ter sido superadas, como a ideia de que são pessoas que devem estar prioritariamente sob cuidados da área da saúde. Houve a recomendação, inclusive, de que ficassem de fora das atividades remotas. Travou-se, então, uma importante luta, pelas próprias pessoas com deficiência, suas famílias e especialistas da educação especial, em defesa do direito à educação em igualdade de condições com as demais pessoas.  

Ainda sem superar os efeitos da pandemia, no que se refere às questões psicossociais e de relações interpessoais,  as enchentes que assolaram o  estado do Rio Grande do Sul nos colocaram diante do seguinte cenário: mais de mil escolas danificadas, com perda de móveis, documentação e equipamentos, gerando a necessidade de reforma e readequação; muitas que não foram comprometidas, mas passaram a servir de abrigo; tantas outras estão em localidades cujo acesso e transporte foram prejudicados; além daquelas totalmente afetadas e que deverão ser reconstruídas. Ao todo, foram 250 municípios atingidos e quase 380 mil estudantes impactados, segundo dados da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul. 

Apesar de os danos físicos serem mensuráveis, não somente nas instituições de ensino, mas em toda a comunidade, assim como ocorre em outras situações — sejam emergenciais ou não —, não temos dados precisos acerca de como as pessoas com deficiência foram atingidas. Associações e coletivos de e para pessoas com deficiência noticiam suas ações e necessidades, organizam e administram campanhas de doação para famílias e abrigos que acolhem pessoas com deficiência. Todavia, a sensação de isolamento de quem atua com essa população, seja na escola ou fora dela, é latente. Raramente se consegue extrapolar os espaços onde esses grupos se organizam e suas necessidades específicas dificilmente são consideradas, quando a discussão se dá em âmbitos mais gerais.  

Retorno às escolas precisa ser planejado 

Para essa população, somam-se as perdas de recursos de tecnologia assistiva de uso habitual: aparelhos auditivos, cadeiras de rodas, cadeiras de banho, bengalas, andadores, próteses, equipamentos de comunicação alternativa e aumentativa, pranchas de comunicação, cães-guia, animais de suporte emocional, objetos que favorecem a regulação em situações de crise, dentre outros que asseguram não só a comunicação e interação com autonomia e segurança, mas uma melhor qualidade de vida. Além disso, é fundamental considerar a demanda por intérpretes de Libras, guias-intérpretes e apoio por períodos prolongados, por exemplo. 

Apesar de citarmos recursos de acessibilidade que podem, no caso de perdas, ser repostos, devemos levar em conta as perdas irreparáveis. O luto pela perda de entes queridos e animais de estimação, a tristeza profunda por terem presenciado a destruição de suas casas e escolas e o medo do recomeço. Por tudo isso, a compreensão de um clima positivo deve considerar a escuta atenta e cuidadosa de cada história e o acolhimento das emoções e sentimentos de cada um, sejam estudantes ou profissionais da escola. 

São bebês, crianças, adolescentes, jovens e adultos que necessitam de atenção para identificar as perdas que podem impactar ou impedir o retorno à escola. É fundamental que essa volta seja planejada considerando as condições de cada território e as características de cada local, como e o quanto foi afetado, de modo a possibilitar a força de reação necessária. O mesmo vale para cada escola, com a leitura de seu contexto e das possibilidades de sua comunidade, bem como da formação de redes de apoio e da inclusão de pessoas com deficiência na reorganização ou na reconstrução de seus espaços.  

Ponto fundamental é identificar, em cada escola, professores das classes comuns e do atendimento educacional especializado (AEE) que possam realizar um trabalho de aproximação com familiares e cuidadores de pessoas com deficiência, a fim de conhecer as necessidades, possibilitando que essa reforma ou reconstrução resulte em espaços mais acessíveis do que eram antes, no sentido mais amplo que a acessibilidade pode alcançar.  

Processos como o de busca ativa, por exemplo, diferentemente do que ocorreu na pandemia, devem, sim, priorizar os bebês, crianças e estudantes com deficiência para identificar os recursos de acessibilidade necessários para seu retorno. Eles devem ser ouvidos em suas singularidades para que, quando estiverem na escola, ou nos espaços em que a escola viverá por determinado período, possam expressar seus sentimentos, sua compreensão de todo esse cenário, seus desejos de uma escola que acolha as diferenças, que consiga fazer com que todos se sintam pertencentes, e, assim, contribuir para que o clima escolar seja, de fato, positivo.  

Oportunidade de recomeçar com ênfase na inclusão  

A escola, como sabemos, pode agregar e potencializar a força da comunidade local e do entorno, como temos visto nesses momentos de crise. O clima escolar tem relação com a qualidade da vida na instituição educativa, que deverá ser repensada por todos, com a reelaboração do projeto político-pedagógico (PPP) de cada unidade e a reconstrução de um currículo para que ele seja de fato inclusivo.  

Se o clima emerge de um conjunto de percepções que envolve as relações interpessoais, os valores compartilhados e as regras estabelecidas e legitimadas, assim como as metas e objetivos propostos para o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem, das relações sociais, das estruturas organizacionais, da acessibilidade e da participação, temos, então, a possibilidade de recomeçar dando ênfase a “todas as pessoas”, para que nesse “todas” sejam contempladas e consideradas, de fato, todas elas. Inclusive aquelas pertencentes a grupos historicamente excluídos ou minorizados. 

Assim, em tempos de reforma e reconstrução, vislumbramos a oportunidade de devolver à sociedade e, principalmente aos bebês, crianças, adolescentes, jovens e adultos com deficiência, uma escola verdadeiramente acessível. E não estamos falando apenas de acessibilidade arquitetônica (rampas, corrimãos, banheiros etc.), mas sim da promoção e da construção de espaços acolhedores e do investimento em ações pedagógicas e relacionais que propiciem esse clima escolar positivo que buscamos, com interações sociais mais justas, respeitosas e solidárias.  

Tais ações não são simples, dado o período de perdas e sofrimento pelo qual todos vêm passando, mas podem ser alcançadas com apoio intersecretarial (educação, saúde, assistência social e outras) e planejamento sistematizado e institucional para a atualização dos regimentos escolares, visando que eles sejam inclusivos e convidativos para as diversas formas de ser, estar, aprender e conviver. E para a elaboração de um plano de convivência ético, democrático e anticapacitista.  

  • * Adriana Pagaime é pesquisadora da Fundação Carlos Chagas nos temas educação especial, acessibilidade e capacitismo. Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em distúrbios do desenvolvimento pela Universidade Mackenzie. 
  • * Adriano Moro é pesquisador da Fundação Carlos Chagas e do International Observatory for School Climate and Violence Prevention. Doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com doutorado-sanduíche pela Harvard University e mestrado em psicologia da educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 

IMAGEM/CRÉDITO: Escola Gomes Carneiro, em Porto Alegre (RS), recebe equipe da Associação da Pedagogia de Emergência. Atuação conjunta com Núcleo de Cuidado e Bem-Estar da Secretaria da Educação (Seduc) prevê apoio psicossocial a crianças e jovens em situações traumáticas. Crédito: Cainan Silva/Ascom Seduc

  • Publicado originalmente em 26/06/2024 em https://diversa.org.br/

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