OPINIÃO
- * Por Êmilly Oliveira[1], Joelson Dias[2], Marta Gil[3] e Rita Mendonça[4]
O Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha (25 de julho) foi criado no I Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas em Santo Domingo, em 1992, para fortalecer a união entre as mulheres negras contra o machismo, o racismo, para estimular a reflexão sobre os marcadores de gênero e raça e propor estratégias contra o racismo e todas as formas de discriminação.
No Brasil, a data foi oficializada pela Lei n.º 12.987 como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Tereza liderou o Quilombo Quariterê, um espaço de resistência que foi arrasado pelos bandeirantes em 1770. Ela é uma referência na luta contra a escravidão e um símbolo de resistência para as mulheres negras de todo o país.
Neste 25 de julho de 2024 a Rede de Direitos Humanos (RDH) reflete sobre a condição das mulheres negras no Brasil e sobre a necessidade de se posicionar firmemente sobre a condição da mulher negra com deficiência e sua força de trabalho doméstico em condições análogas às de escravo.
A escravidão do povo africano no Brasil
É importante fazer uma breve retrospectiva histórica sobre o papel do marcador racial como elemento estruturante da sociedade brasileira.
O Brasil detém o triste recorde de ter recebido o maior número de africanos fora da África: foram mais de 4 milhões de pessoas traficadas e escravizadas. O primeiro navio negreiro chegou em 1535, iniciando quase quatro séculos de exploração escravista: nosso país foi um dos últimos a abolir essa prática. Nesse período foram comprometidos os direitos e a dignidade de cerca de 25 gerações, deixando uma marca profunda e duradoura na história do país.
Por outro lado, é crucial reconhecer as contribuições das mulheres negras, que moldaram diversos aspectos da vida brasileira e cujas experiências continuam a influenciar tradições e costumes. As demandas por direitos da população negra, especialmente das mulheres negras resultaram em conquistas consagradas na legislação brasileira e fortaleceram ações e políticas afirmativas.
Mulheres negras são agentes de resistência, responsáveis pela preservação das culturas e tradições africanas, pela transmissão de conhecimentos ancestrais, pela prática de religiões de matriz africana e manutenção de laços comunitários, essenciais para a resistência coletiva. Fortaleceram as relações sociais intergeracionais, o uso sustentável do meio ambiente e o acesso às tecnologias ancestrais a bem da comunidade.
A escravidão contemporânea no Brasil
O tráfico de pessoas ocupa o terceiro lugar entre as atividades mais lucrativas; está presente em praticamente todos os países; meninas e mulheres têm maior probabilidade de exploração sexual, casamentos forçados e condições indignas no trabalho doméstico. Estas práticas aumentam em momentos de crises globais, conflitos armados e eventos climáticos extremos.
No Brasil, o combate ao trabalho escravo contemporâneo é coordenado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que mantém a Lista Suja do Trabalho Escravo, com nomes de empregadores que submetem trabalhadores a condições degradantes.
Identificar situações análogas à escravidão no contexto do trabalho doméstico é complexo e delicado: depende de denúncias anônimas para que equipes especializadas possam resgatar as pessoas, principalmente as mais exploradas: as meninas negras.
O trabalho doméstico no Brasil
O reconhecimento legal do trabalho doméstico como ocupação profissional no Brasil ocorreu apenas no final da década de 1970. É nesse setor da economia que se encontram os menores salários, a menor escolaridade e onde a informalidade é mais comum, negando direitos e obrigações trabalhistas, como contribuição previdenciária, desemprego, licença médica e aposentadoria.
Trabalho Infantil doméstico e o ciclo da pobreza no país
Embora proibido pela Constituição Federal, o trabalho infantil é uma triste realidade que perpetua o ciclo da pobreza. Crianças, especialmente meninas, são frequentemente envolvidas em atividades domésticas desde tenra idade, privando-as de oportunidades educacionais e de um futuro promissor.
Elas não frequentam a escola regularmente, o que compromete seu aprendizado, suas chances de ascensão social e profissional e mantém o ciclo de pobreza. Sem acesso adequado à educação formal, têm dificuldades para adquirir habilidades e conhecimentos necessários para competir no mercado de trabalho moderno. Como resultado, são frequentemente limitadas a empregos informais, braçais e mal remunerados, perpetuando a condição de pobreza e marginalização social.
O trabalho infantil doméstico também expõe as crianças a condições de trabalho perigosas e abusivas, comprometendo sua saúde física, mental e emocional. Essas experiências precoces de exploração e desigualdade deixam cicatrizes profundas que podem afetar seu bem-estar ao longo da vida. Assim, erradicar o trabalho infantil doméstico é crucial para interromper o ciclo da pobreza e para assegurar um futuro mais justo e digno para as próximas gerações.
Meninas pobres, especialmente negras, estão frequentemente envolvidas no trabalho doméstico, onde o ambiente propicia a exploração e está associado a maus-tratos, violência física, psicológica e sexual, além de expô-las a riscos físicos por realizarem atividades inadequadas para sua idade e constituição corporal.
Em troca de alimentação e alojamento, mesmo que em condições precárias de ventilação, espaço mínimo e confinado, camas improvisadas e iluminação insuficiente, elas se tornam ainda mais vulneráveis.
A falta de fiscalização e proteção efetiva nas residências, protegidas pela Constituição como espaços da vida privada, dificulta ainda mais a garantia de direitos fundamentais para as trabalhadoras.
A dependência financeira dos empregadores quanto à moradia e o temor por sua integridade física, mental e moral frequentemente levam essas meninas e mulheres a silenciarem sobre violações dos seus direitos mais básicos.
A força de trabalho das pessoas com deficiência
Pessoas com deficiência podem realizar trabalho remunerado em qualquer ambiente, inclusive o doméstico, desde que suas habilidades e necessidades sejam respeitadas, com acesso garantido a tecnologias assistivas e adaptações conforme sua necessidade. Essas garantias constam da Constituição Federal e de tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Porém, essas garantias são desafiadas pelo capacitismo, que perpetua a discriminação e o preconceito contra pessoas com deficiência e dificulta sua inclusão social e profissional, mesmo com políticas afirmativas como a “lei de cotas” (art. 93 da Lei n.º 8.213/91), que visa promover a inclusão no mercado de trabalho formal.
A falta de reconhecimento das habilidades e potencialidades desses indivíduos agrava sua vulnerabilidade, limitando o seu acesso a serviços básicos, com poucas exigências, baixa remuneração e dificultando o reconhecimento e o exercício de seus direitos trabalhistas.
É premente a necessidade de enfrentar o capacitismo e promover um ambiente de trabalho inclusivo, que valorize a contribuição e a participação das pessoas com deficiência em condições de igualdade.
Mulheres negras com deficiência e trabalho doméstico em condições análogas às de escravo
Essa realidade está mais próxima do que se gostaria de admitir: é comum ouvir histórias de famílias em situação de vulnerabilidade social que aceitam a oferta de enviar suas filhas, muitas vezes meninas, para trabalhar em lares de famílias mais abastadas. Sob a promessa de serem acolhidas como membros da família essas jovens esperam se desenvolver, mas muitas vezes são exploradas e privadas de seus direitos mais básicos.
Recentemente a sociedade brasileira foi confrontada por uma notícia alarmante: uma mulher negra com deficiência foi resgatada pelo MTE, Polícia Federal e outros órgãos públicos.
Ela começou a trabalhar nessas condições antes dos 10 anos de idade e, agora com 50 anos de idade. não teve acesso à educação formal, à alfabetização em Libras (língua brasileira de sinais) e nem a atendimento médico ou odontológico. Devido à sua surdez, a comunicação limita-se a gestos rudimentares.
Muito ainda a avançar
A 5ª Conferência Nacional da Pessoa com Deficiência, realizada entre os dias 14 e 17 de julho de 2024 assinalou a retomada da participação social nas discussões sobre avanços nas políticas públicas voltadas para esse segmento da população brasileira.
Representantes de organizações da sociedade civil, autoridades governamentais, especialistas e pessoas com deficiência refletiram sobre desafios e conquistas. Foram abordados temas como acessibilidade, inclusão social, mercado de trabalho, saúde, educação e direitos humanos, destacando-se a necessidade de fortalecer a implementação de políticas inclusivas e assegurar o pleno exercício dos direitos das pessoas com deficiência em todas as esferas da sociedade.
Foram discutidas propostas para ampliar o acesso a serviços e programas que promovam a igualdade de oportunidades e o desenvolvimento integral das pessoas com deficiência e estratégias para superar obstáculos persistentes, como o capacitismo e a falta de acessibilidade. A participação ativa dos próprios indivíduos com deficiência é fundamental para avaliar conquistas, identificar novas prioridades e definir diretrizes que possam orientar futuras políticas públicas, visando assegurar uma sociedade mais inclusiva e respeitosa com a diversidade e a inclusão.
A luta pelo fim da condição de trabalho análogo à escravidão permanece como um desafio a ser encarado em um futuro que esperamos seja próximo.
[1] Êmilly Oliveira é advogada do Escritório Barbosa e Dias (B&D), membra da Rede de Direitos Humanos (RDH).
[2] Joelson Dias, advogado, sócio fundador do IDECON, já foi presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) e Ministro Substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). É membro fundador da Rede de Direitos Humanos (RDH).
[3] Marta Gil é socióloga, fundadora e coordenadora executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas; empreendedora social reconhecida pela Ashoka Empreendedores Sociais e fundadora da Rede de Direitos Humanos (RDH).
[4] Rita Mendonça é advogada de Direitos Humanos, presidenta do Instituto Guerreiros da Inclusão (IGI) e membra fundadora da Rede de Direitos Humanos (RDH).
Artigo originalmente publicado em https://www.linkedin.com/ – https://www.linkedin.com/pulse/for%C3%A7a-de-trabalho-da-mulher-negra-e-com-defici%C3%AAncia-do-rita-mendon%C3%A7a-6unyf/?trackingId=hNJRaIHtQHO2A4OH8TCqtA%3D%3D
Descrição da imagem: gravura de Tereza de Benguela, mulher negra (domínio público)
Muito feliz, em ver artigo para o qual contribui publicado aqui no Diário PcD, uma fonte de informação confiável e respeitada.