- OPINIÃO
- * Por Patricia Allerberger
O acesso à informação é um direito garantido pela Declaração dos Direitos Humanos. Isso significa, entre outras coisas, que todas as pessoas, incluindo as pessoas com deficiência, tenham acesso ao jornalismo. E, para isso acontecer, ele deve ser acessível e inclusivo.
As nomenclaturas corretas: por que os jornalistas precisam saber o jeito certo?
O jornalismo é fundamental para o desenvolvimento do senso crítico de uma sociedade. Porém, precisamos estar atentos para que esse senso crítico não seja construído em bases preconceituosas. Uma dessas bases é o capacitismo.
Capacitismo é todo e qualquer preconceito e/ou discriminação contra pessoas com deficiência, subestimando a capacidade da pessoa com base na sua deficiência.
A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) garante os direitos das pessoas com deficiência no Brasil e pune pessoas e organizações que desrespeitam e/ou agridem física, mental ou emocionalmente pessoas com deficiência. Mas, além da punição, é preciso que haja algumas mudanças na sociedade. E os profissionais da imprensa têm papel crucial nessa transformação.
A primeira diz respeito ao vocabulário que é utilizado.
Ainda é muito comum que termos ultrapassados sejam usados para se referir a uma pessoa com deficiência. Eles são ultrapassados porque não levam em conta que antes de qualquer deficiência vem a pessoa.
Alguns deles são:
- Deficiente
Esse termo é errado porque a deficiência de uma pessoa é apenas uma das muitas características que ela possui; faz parte dela, mas não define quem ela é.
- “Portadora de deficiência” ou “Portadora de necessidades especiais”
Esses são termos errados porque ambos dão a entender que a deficiência é algo que se pode carregar ou não de acordo com a vontade da pessoa, como se fosse um objeto que pode ser deixado em uma gaveta do armário.
- “Pessoa PcD”
Esse termo é errado por dois motivos: primeiro porque o “P” de PcD já é de “pessoa” e segundo porque uma pessoa não deve ser reduzida a uma sigla.
Use sempre “pessoa com deficiência”, assim mesmo, por extenso.
No grande glossário da acessibilidade e inclusão – o que dizer e o que não dizer, conteúdo que costumamos compartilhar em nossas palestras e treinamentos para incentivar profissionais da área da comunicação a utilizarem expressões adequadas em seus conteúdo externos e em conversas e reuniões internas, existem outros termos e expressões que não devem ser usados e a melhor forma de substituí-los. Ele pode ser acessado a qualquer momento no Blog da Sondery.
Vale ressaltar que cada comunidade (surdos, cegos, etc), e até cada indivíduo, tem sua preferência. Então, se surgir uma situação em que você fique em dúvida de como se dirigir a uma pessoa com deficiência, ao invés de usar um termo capacitista chame-a pelo nome, que não tem erro.
Outra contribuição importante que a imprensa deve dar para a luta das pessoas com deficiência é deixar de usar a palavra “deficiência” como sinônimo de “falta” ou “falha” (deficiência de vitamina, deficiência de nutrientes, deficiência de caráter deficiência no ataque ou na defesa, etc) e antônimo de eficiência nas pautas em geral, pois quando se relaciona algo ruim com deficiência, está reafirmando, mesmo que sem a intenção, que ter uma deficiência também é algo ruim. E isso não é verdade. Muito menos tem relação com a eficiência de uma pessoa ou de um time. O oposto de eficiência é ineficiência.
Além das nomenclaturas corretas: o que precisa mudar?
Além do uso de nomenclaturas corretas, é necessário que o modo como a sociedade enxerga as pessoas com deficiência seja modificado.
Cada pessoa com deficiência é única, tem sua personalidade, hobbies, trabalhos, convicções e sonhos, assim como todo mundo. Porém, ainda existe uma crença de que todas são exatamente iguais. Essa ideia não só reforça o modelo médico da deficiência, que enxerga a deficiência como uma doença que precisa ser curada, perpetuando a ideia de que pessoas com e sem deficiência não podem se misturar, que todas as pessoas com deficiência são iguais, que não são capazes de fazer suas próprias escolhas e o entendimento de que não há necessidade de customizar produtos de tecnologia assistiva (a gente conversa sobre a importância da personalização desses acessórios aqui) e de que elas só conversam sobre temas ligados ao universo da pessoa com deficiência.
Essa, inclusive, é uma das principais reclamações das pessoas com deficiência quando o assunto é imprensa: elas são chamadas apenas para participar de matérias e entrevistas relacionadas à inclusão e acessibilidade, principalmente em setembro, mês em que é celebrado o Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência (21/09) e muitas das conquistas da comunidade surda, como o Dia Internacional da Língua de Sinais (23/09) e Dia Nacional do Surdo (26/09).
Calendário de acessibilidade e inclusão para 2024
Pensando nisso, com o objetivo de mostrar para a imprensa que pessoas com deficiência não só podem conversar sobre qualquer tema como têm muito para contar, criamos o “Mudando de Assunto“, um programa de entrevistas onde a Ana Clara Schneider, fundadora e diretora executiva da Sondery, conversa com pessoas com deficiência sobre qualquer assunto que não seja acessibilidade e inclusão.
A Ana já entrevistou Giovanni Venturini, ator com nanismo sobre seus filmes e novelas, Leo Castilho, arte-educador surdo sobre museus e poesia, Rogério Ratão, escultor cego sobre exposições e sua vivência cultural como artista em Nova York, entre outros.
Você pode conferir todas as entrevistas do Mudando de Assunto no canal do YouTube da Sondery.
Vamos supor que você está trabalhando em uma pauta sobre o Dia dos Namorados, por exemplo. Por que não aproveitar a ocasião e entrevistar um casal onde um ou ambos têm alguma deficiência para saber como vai ser a comemoração deles?
Em 2022 a Sondery realizou a consultoria para um comercial da campanha de Dia dos Namorados da Lacta, feito pela Agência DAVID, baseado na história real de um casal surdo-ouvinte.
No filme um homem ouvinte está em uma festa onde a maioria das pessoas conversa em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Ele se interessa por uma das convidadas e pergunta para a anfitriã da festa como faz para conversar com essa convidada surda. Sua amiga ensina os sinais de “Oi, vamos conversar um pouquinho? “ e ele vai puxar papo com a moça.
O foco do comercial é mostrar o nascimento de uma história de amor entre duas pessoas e não causar emoção pela deficiência auditiva da convidada ou mostrar a Libras de uma forma didática.
Mesmo sendo um vídeo de apenas trinta segundos e a maior parte dos ouvintes que vão assisti-lo não conseguir se comunicar usando a Língua Brasileira de Sinais, o fato dela estar presente a sociedade vai pensando nela com mais naturalidade, aumentando a procura e produção de conteúdos cada vez mais acessíveis (e quem sabe até não desperta o interesse por aprender a língua).
Como interagir com as pessoas com deficiência
Às vezes, por falta de conhecimento e experiência, episódios como o da jornalista que estendeu a mão para cumprimentar uma pessoa cega podem acontecer. Esse tipo de situação não só é constrangedora e vira piada, como fortalece o capacitismo.
Portanto, todo(a) jornalista deve saber como interagir com as pessoas com deficiência tanto para não cometer gafes e fortalecer preconceitos, como para deixar que a entrevista seja o mais natural possível.
Separei 7 dicas para te ajudar:
- Escolha um local acessível
Não tenha vergonha de perguntar que tipo de acessibilidade a pessoa precisa e garanta que a locação a tenha. Nada de sugerir que a pessoa com mobilidade reduzida seja carregada no colo escada a cima, viu?
- Não entre em pânico.
Pessoas com deficiência são como qualquer outra pessoa. Não há necessidade de entrar em desespero ao encontrar um cadeirante, por exemplo.
- Pergunte se a pessoa precisa de ajuda
Antes de sair ajudando, pergunte para a pessoa se ela precisa de ajuda e como você pode ajudar. Não é porque uma pessoa tem deficiência que ela necessariamente precisa (ou quer) ser ajudada o tempo todo.
- Não olhe com pena
Não olhe para uma pessoa com deficiência como alguém digno de pena e compaixão.
O mesmo vale para o olhar de exemplo de superação. Pessoas com deficiência não existem para te inspirar a fazer nada.
- Não trate como criança
Não fale com um adulto com deficiência como falaria com uma criança com ou sem deficiência. Nada de falar no diminutivo, hein?
- Descreva a si mesmo(a) e o ambiente
Faça a sua descrição e as das coisas mais importantes do ambiente em que estão para uma pessoa cega ou com baixa visão.
- Converse olhando para a pessoa entrevistada não para quem a acompanha
Fale sempre olhando para quem vai responder a pergunta, assim como faz com um(a) entrevistado(a) sem deficiência. Não é porque uma pessoa tem deficiência e está acompanhada que ela precisa que falem por ela.
No caso de pessoas com deficiência auditiva com intérprete de Libras, faça a pergunta olhando para a pessoa entrevistada e escute a resposta olhando para o intérprete.
Descrição de Imagens
Nas redações existem profissionais especializados em diferentes áreas para que uma pauta seja bem executada (redatores, fotógrafos, revisores, etc), mas entre eles não encontramos um especialista em audiodescrição. Por esse motivo raramente nos deparamos com matérias ou entrevistas que tenham imagens descritas.
A audiodescrição é um recurso de acessibilidade para transformar imagens em palavras também conhecido como “texto alternativo”. Esse recurso permite que pessoas com deficiência visual ou intelectual tenham acesso à imagem.
Para garantir que as diretrizes da audiodescrição estejam sendo cumpridas, como evitar excesso de informação, o ideal é ter dois profissionais da área na equipe: um(a) audiodescritor(a) e um(a) revisor(a) em audiodescrição.
No texto O Papel do Consultor em Audiodescrição Edgar Jacques, consultor de acessibilidade especialista em audiovisual, reflete sobre a importância da consultoria de audiodescrição e porque o revisor precisa ser uma pessoa cega.
Além da acessibilidade, a descrição de imagens é importante para melhorar o SEO (Search Engine Optimization – Otimização de Mecanismos de Busca) para imagens.
Ao fazer SEO nas imagens o Google é informado sobre o conteúdo de cada uma, aumentando as chances de rankear uma delas nas buscas do Google Imagens. Esse ranqueamento atrai tráfego orgânico e qualificado.
O serviço de audiodescrição pode ser contratado em uma consultoria de acessibilidade como a da Sondery.
Acessibilidade Web
Não são apenas imagens que precisam estar acessíveis na internet. Todo conteúdo digital deve ser acessível para todas as pessoas. Para isso acontecer da forma correta surgiu a WCAG.
A WCAG (Web Content Accessibility Guidelines – Diretrizes de Acessibilidade para o Conteúdo da Web) é um conjunto de diretrizes e recomendações de acessibilidade para web desenvolvido pelo consórcio W3C – World Wide Web, através do WAI (Iniciativa de Acessibilidade na Web), em colaboração com pessoas e organizações em todo o mundo em 1999 e em frequente atualização.
Todo profissional que trabalha com criação de conteúdo digital para sites, blogs, portais e redes sociais deve conhecer pelo menos o básico de WCAG para que todo o conteúdo produzido seja acessível desde a concepção possa ser encontrado e consumido de fato por todas as pessoas.
O documento completo pode ser encontrado em português de forma gratuita e acessível na internet.
Considerações Finais
Como uma pessoa com deficiência que escolheu se formar em jornalismo e que escutou inúmeras vezes durante a graduação que pautas com protagonismo da pessoa com deficiência não teriam interesse ou fontes suficientes, sei que não é um caminho simples.
Mas agora que você, jornalista, conhece mais sobre o universo da pessoa com deficiência e sabe do papel fundamental que tem na construção de uma sociedade anti-capacitista, espero que além de passar a se enxergar como um(a) aliado(a) na luta pela representatividade respeitosa e verdadeira das pessoas com deficiência na imprensa e que contribui para a quebra de preconceitos e barreiras atitudinais que atrapalham a luta pelos direitos das pessoas com deficiência, leve essa luta para as reuniões de pauta do veículo em que trabalha, seja ele online ou offline, e estimule seus colegas a também serem aliados(as).
Recomendações de Leitura
- Guia Anti Capacitista – Ivan Baron
- Capacitismo: O mito da capacidade – Victor Di Marco
- Manual Ampliado de Linguagem Inclusiva – André Fischer
- * Patricia Allerberger é jornalista com pós graduação em Gestão da Comunicação em Mídias Digitais.