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BPC: um direito à dignidade ameaçado

BPC: um direito à dignidade ameaçado OPINIÃO - * Por Mara Gabrilli

OPINIÃO

  • * Por Mara Gabrilli

Para muitas pessoas idosas e com deficiência, o Benefício de Prestação Continuada não é apenas uma assistência; é o único fio de dignidade que as separa da miséria extrema

03/12/2024 | 03h00

Luiza, 8 anos, tem paralisia cerebral severa. Moradora de Rio Grande da Serra, município da região metropolitana de São Paulo, a pequena quase nunca sai de casa. Com a cadeira de rodas menor do que o seu corpo, há anos aguarda uma nova órtese do Sistema Único de Saúde (SUS). Sua mãe, abandonada pelo pai quando soube da deficiência, precisou largar o trabalho para cuidar em tempo integral da filha. As duas sobrevivem hoje com o auxílio do Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Escrever este artigo como senadora e como mulher com deficiência é um ato de resistência e, acima de tudo, de compromisso com as milhões de brasileiras e brasileiros que, assim como a Luiza, dependem desse benefício para sobreviver.

Para muitas pessoas idosas e com deficiência, o BPC não é apenas uma assistência; é o único fio de dignidade que as separa da miséria extrema. Agora, diante da decisão do governo em promover cortes e mudanças nos critérios de concessão, é imprescindível dar voz àqueles que já vivem à margem da sociedade.

O Benefício de Prestação Continuada é garantido pela nossa Constituição, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) e no Estatuto da Pessoa Idosa para assegurar um salário mínimo mensal às pessoas com deficiência e às pessoas idosas com 60 anos ou mais que comprovem ter renda por pessoa do grupo familiar igual ou menor que um quarto do salário mínimo.

Hoje, mais de 3,3 milhões de pessoas com deficiência dependem desse benefício. São indivíduos que não podem contar com uma política de cuidados, que pouco acesso têm a serviços de saúde e reabilitação. Enfrentam barreiras diárias – físicas, sociais e financeiras – que tornam a inserção ao mercado de trabalho uma realidade, muitas vezes, inalcançável. Lembrando ainda que o porcentual de pessoas com deficiências, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGEP), de 2023, chega a 30% da população idosa e se eleva para 52% dos quem têm mais de 80 anos.

Por trás de cada estatística, existe uma história, uma vida, um sonho interrompido. É a mãe que abandonou o emprego para cuidar do filho, é o jovem tetraplégico que depende de fraldas, medicamentos específicos, suporte de tecnologia assistiva. É a mulher idosa que, com mobilidade reduzida, vive sozinha e sem suporte familiar. Sem uma política de cuidados instituída em nosso país, o BPC é, muitas vezes, a única fonte de renda dessas famílias.

Incluir o BPC nos cortes de gastos anunciados pelo governo é condenar essas pessoas a uma pobreza ainda mais severa. Essa não é a primeira vez que o Poder Executivo tenta fazer mudanças e cortes no BPC, mas é surpreendente ver o atual governo, que afirma “trabalhar pelo povo”, tirar de quem mais precisa. Estamos falando de famílias que já precisam fazer escolhas impossíveis: comprar comida ou remédios? Pagar o aluguel ou adquirir equipamentos essenciais, como uma cadeira de rodas?

Voltar a contar o BPC como renda em uma mesma família para acesso ao benefício desrespeita a garantia legal do Estatuto da Pessoa Idosa (artigo 34) e ainda as particularidades da vida de milhões de brasileiros que possuem, na mesma família, pessoas idosas e também com deficiência, impossibilitados de trabalhar. Além de despesas básicas como alimentação e moradia, muitas pessoas enfrentam custos adicionais com tratamentos, terapias, medicamentos e transporte. Sem o benefício, a exclusão se agrava e ficamos mais longe do objetivo de erradicar a pobreza em nosso país.

A limitação de acesso ao BPC também representa uma perda para a economia local, pois esses recursos são imediatamente reinvestidos no consumo básico, movimentando comércios e pequenos negócios. Estudos já comprovaram que cada real investido em programas de transferência de renda gera um impacto positivo na economia. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cada R$ 1 investido no BPC resulta em R$ 1,19 no Produto Interno Bruto (PIB), além de aumentar o consumo e gerar um efeito multiplicador.

Não podemos permitir que o BPC seja tratado como um privilégio ou um peso orçamentário. Sabemos que o governo só não desvinculou o BPC do salário mínimo porque o benefício é um direito constitucional, uma política pública que traduz os valores de justiça social previstos na Constituição de 1988. Mais do que isso, é uma garantia mínima de dignidade humana. Precisamos avançar, não retroceder.

As novas regras impostas pelo governo nesse anúncio de corte de gastos são cruéis. Pela proposta, passam a contar para acesso ao benefício renda de cônjuge e companheiro, mesmo que não more na mesma casa (no caso da pequena Luiza, abandonada pelo pai, se torna ainda mais grave), e renda de irmãos, filhos e enteados. Ou seja, querem impossibilitar a garantia de uma vida digna para quem já sobrevive com o mínimo.

Como pessoa com deficiência, conheço de perto os desafios que essas comunidades enfrentam. Sei muito bem que hoje só estou aqui, saudável e produtiva, porque tive oportunidades e o serviço valoroso de uma cuidadora – algo que nem de longe representa a realidade de milhões de brasileiros.

Falamos de pessoas que enfrentam barreiras desde o momento que saem de casa. Acessar uma escola, um hospital ou um espaço de lazer. Nada é fácil quando as cidades não te acolhem, quando os serviços não te incluem. Você consegue imaginar como é sobreviver sem renda, sem acesso a serviços básicos e sem perspectivas?

Faço um apelo aos meus colegas parlamentares, gestores públicos e toda a sociedade para refletirem sobre o impacto de suas decisões. Estamos diante de um momento crucial, em que precisamos escolher entre aprofundar a exclusão ou garantir uma sociedade minimamente justa. Não é hora de limitar o BPC. Pelo contrário, precisamos ampliar as condições de acesso e assegurar que ninguém fique para trás.

O Brasil tem a chance de mostrar que valoriza todos os seus cidadãos, independentemente de sua condição física, social ou financeira. O BPC precisa continuar sendo um instrumento de justiça e dignidade.

Neste Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, vamos lembrar que cuidar de pessoas é política de Estado, uma das mais responsáveis e evoluídas, de autoria de quem mira, de fato, um futuro próspero para todos os brasileiros.

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  • Mara Gabrilli É SENADORA (PSD-SP)

Artigo originalmente publicado em https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/bpc-um-direito-a-dignidade-ameacado/

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