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  • qua. jan 8th, 2025
Nunca foi tão fácil ser surdo OPINIÃO - * Por PAULA PFEIFER

OPINIÃO

Nunca foi tão fácil ser surdo. Antes que você comece a bufar e a me acusar de ser louca, me deixa explicar por que digo isso. É inegável que vivemos na melhor época da história da humanidade para as pessoas com algum grau de surdez. Quanto a isso, não há discussão. As possibilidades de tratamento e reabilitação auditiva disponíveis hoje são incríveis e estão ao alcance de qualquer um; além disso, as tecnologias de acessibilidade estão na palma das nossas mãos (e boa parte delas é gratuita).

A audição é um dos presentes mais preciosos e delicados que a natureza nos deu. Ela nos garante conexão, segurança e independência.

Venho da idade da pedra, quando você não encontrava médicos otorrinos especialistas em surdez e os aparelhos auditivos eram beges, gigantes e não faziam absolutamente nada além de amplificar os sons sem nenhuma sofisticação ou algoritmo treinado com inteligência artificial. Acessibilidade não existia, programação de TV com legendas era só em meia dúzia de programas de quem tinha NET e você não ouvia falar da palavra deficiência. Pedir comida? Só usando telefone. Chamar um táxi? Idem! Contatar seu banco ou cartão de crédito? Também. Assistir a um filme no cinema? Só adivinhando os diálogos ou fazendo leitura labial em outros idiomas. A vida como conhecemos agora, cheia de facilidades, onde tudo acontece na velocidade da luz e com informação abundante era coisa de filme de ficção científica.

“Ah, mas um aparelho auditivo custa uma fortuna, Paula”

Custa mesmo, mas aqui no Brasil, você tem duas possibilidades para resolver esse problema: AASIs do SUS (das mesmas marcas que você compra nas lojas) e até um fabricante nacional de aparelho auditivo de baixo custo. Se for comprar, fiz até uma série de aulas que ensina todos os segredos da indústria da audição.

“Ah, mas é tão difícil conseguir um AASI do SUS, Paula”

Eu não disse que era fácil. Boa parte das pessoas desiste, e esse é um dos motivos que fazem com que o sistema nos trate como lixo: faltam cidadãos fiscalizadores que fiquem em cima, reclamem, briguem e não desistam. 90% das mensagens que eu recebo são de reclamações, e só 10% são de pessoas me contando que foram até o fim na briga, usando Ouvidoria do Ministério da Saúde, Defensoria Pública e advogado particular para conseguir. O que não pode é ficar de braços cruzados e, pior, aceitar a lerdeza e a falta de acessibilidade do sistema. Os caras têm a pachorra de LIGAR para avisar as pessoas com DEFICIÊNCIA AUDITIVA que chegou a hora de uma consulta ou de buscar os aparelhos em vez de mandar uma mensagem escrita, por motivos ÓBVIOS. Ah, também não podemos esquecer que o dinheiro do pagador de impostos que sustenta isso tudo é usado de forma inversamente proporcional aos números da surdez no Brasil.

Menos de 3% da população de 10,7 milhões de pessoas com algum grau de surdez usa Libras, mas o dinheiro ‘público’ é majoritariamente direcionado para a Língua de Sinais. Em 2019, uma única escola especial para surdos sinalizados recebia o equivalente a 60% do valor que o país inteiro recebia para reabilitação auditiva. Pode isso? Tanto pode, que continua acontecendo.

“Ah, mas os aparelhos auditivos do SUS não são os top de linha, Paula”

Claro que não. São aparelhos das mesmas marcas que você encontra nas lojas, mas sem a perfumaria que faz com que UM aparelho chegue a custar R$20.000. O objetivo é te fazer ouvir melhor. E sim, o sistema é todo falhado, o que – em conjunto com a falta de transparência tanto dele quanto da indústria da audição – deixa as pessoas desamparadas e perdidas. Mas tem muita gente muito feliz usando seus aparelhos auditivos do SUS, ok? O nosso grupo no Facebook está lotado de relatos positivos.

A ciência já provou os enormes estragos que a surdez não tratada causa ao cérebro humano, e todos nós estamos cansados de comprovar os estragos que ela causa também em todas as áreas das nossas vidas. Todo mundo conhece alguém que tem um bebê, criança ou adulto na família que é usuário de próteses auditivas – ou que deveria ser. Todo mundo usa alguma coisa dentro do ouvido (e quem tem surdez leve e moderada pode até transformar seus AirPods em aparelhos de audição), e isso era o sonho de consumo da surdarada mais antiga como eu. Achávamos que o dia em que isso acontecesse ninguém daria a mínima para o fato de termos algo dentro ou atrás do ouvido, mas ainda assim há quem não use AASI por vergonha e medo de que descubram sua deficiência.

No passado você não encontrava comunidades digitais de pessoas com perda auditiva para fazer amigos, fazer perguntas e compartilhar seus desafios. Eu mesma vivenciei a surdez sozinha de 1981 até 2010.

Nunca foi tão fácil ser surdo. Antes que você comece a bufar e a me acusar de ser louca, me deixa explicar por que digo isso. É inegável que vivemos na melhor época da história da humanidade para as pessoas com algum grau de surdez. Quanto a isso, não há discussão. As possibilidades de tratamento e reabilitação auditiva disponíveis hoje são incríveis e estão ao alcance de qualquer um; além disso, as tecnologias de acessibilidade estão na palma das nossas mãos (e boa parte delas é gratuita).

A audição é um dos presentes mais preciosos e delicados que a natureza nos deu. Ela nos garante conexão, segurança e independência.

Celebridades saem do armário, o Papa usa aparelhos auditivos, o Hulk fez um implante coclear. A tecnologia avançou tanto que hoje temos conectividade bluetooth, integração com todos os smartphones e opções de personalização que se adaptam a diferentes ambientes sonoros. Podemos fazer reuniões com legendas em tempo real, assistir milhares de filmes e séries com legendas em todos os idiomas, transcrever áudios em questão de segundos, pedir um iFood e ver o entregador chegar pelo vídeo do interfone. Para aqueles que vieram da idade da pedra, é inacreditável, parece um episódio dos Jetsons (nossa, como sou dinossaura, rsrsrs).

A perda auditiva não é só um problema pessoal — é um problema profissional, que afeta nossa produtividade, comunicação e confiança. Priorizar a saúde auditiva garante que você possa prosperar em todas as áreas da sua vida. O custo emocional da surdez é muito alto. As sutilezas de um tom de voz, as notas de uma música, os sons da natureza, a facilidade nas conversas, tudo isso se perde.

Num futuro bem próximo, os aparelhos auditivos vão se tornar dispositivos de saúde multifuncionais. Em breve, poderão monitorar sua frequência cardíaca, rastrear os seus níveis de estresse e até mesmo fornecer tradução de idiomas em tempo real. E falta pouco para que isso tudo se torne realidade. Já pensou, que maravilha?

Os dias de desculpas esfarrapadas acabaram.

  • * Paula Pfeifer – (Surdos Que Ouvem)  é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

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