OPINIÃO
- * Por Jairo Varella Bianeck
Imagine se preparar durante meses, talvez anos, para um concurso público. Estudar longas horas, abrir mão de momentos de lazer, noites de sono e convívio familiar. Depois de tanto esforço, você é aprovado com uma nota superior a muitos outros candidatos e, mesmo assim, não é chamado para assumir a vaga. Agora, imagine que isso acontece porque você faz parte da cota de Pessoas com Deficiência (PcD), mas a administração pública decide aplicar um sorteio que não está exatamente de acordo com o que o edital prometia.
Esse é o drama enfrentado por diversos candidatos no Concurso Público Nacional Unificado (CNU) para o cargo de Auditor Fiscal do Trabalho. Mesmo com notas superiores às últimas convocadas na ampla concorrência, eles conseguiram ficar de fora do Curso de Formação, etapa final e obrigatória para a nomeação. A pergunta que fica é: como isso pode acontecer, se as regras estavam claras no edital?
No edital do concurso, havia uma cláusula essencial para garantir a igualdade entre os candidatos: aqueles inscritos nas cotas de PcD, que obtiveram notas superiores ao último candidato convocado, deveriam ser chamados. Isso parece simples, certo? Mas, na prática, não foi o que aconteceu.
Em vez de permitir que os candidatos PcDs mais bem classificados fossem chamados pela lista geral — algo que já é uma prática consolidada em muitos concursos —, a administração pública optou por “limitar” esses candidatos apenas à lista reservada às pessoas com deficiência. O resultado? Candidatos com notas altas foram ignorados, enquanto outros, com notas inferiores, conseguiram suas vagas.
O Problema da Alternância e Proporcionalidade
Para entender melhor onde está o erro, precisamos falar de dois critérios importantes previstos na Lei 12.990/2014: alternância e proporcionalidade.
Esses critérios garantem que, durante a convocação dos aprovados, haja um equilíbrio entre a lista geral e as listas de cotas (PcD e de Pessoas Pretas e Pardas – PPP). Ou seja, o processo deve ser intercalado: uma vaga para a ampla concorrência, outra para a cota PcD ou PPP, e assim por diante, respeitando a proporção exigida no edital.
O que aconteceu nesse concurso é que a alternância foi quebrada. A administração pública aplicou automaticamente os candidatos PcDs à sua lista específica, sem considerar a possibilidade de eles serem convocados pela lista geral, onde suas notas lhes oferecem uma vantagem justa. Isso violou o direito de concorrência em igualdade de condições, previsto tanto no edital quanto nas normas legais.
Pode parecer uma questão técnica, mas não é. Estamos falando de justiça. Quando um candidato PcD obtém nota alta o suficiente para entrar em ampla concorrência, ele deve ser tratado como qualquer outro candidato. Colocá-lo obrigatoriamente na lista de PcDs significa desconsiderar os méritos que ele apresentou durante o concurso.
E isso vai além dos méritos individuais. Essa prática prejudica a própria política pública de inclusão, pois limita o número de pessoas com deficiência que podem ser beneficiadas. Pense da seguinte forma: se os candidatos PcDs com notas altas foram chamados pela ampla concorrência, isso libera espaço na lista de cotas para outros candidatos com deficiência. No final, mais pessoas PcDs seriam convocadas, ampliando o alcance da política de inclusão.
A Constituição Federal é clara: a administração pública deve seguir os princípios da legalidade, igualdade e eficiência. Isso significa que o poder público não pode criar regras arbitrárias ou interpretar a lei de forma a deficiências de grupos específicos.
Além disso, o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que tem força de norma constitucional. Essa convenção garante que pessoas com deficiência tenham acesso ao trabalho público em condições de igualdade. Isso não é apenas uma recomendação: é uma obrigação legal.
Quando a administração pública desconsidera esses princípios, não está apenas violando um edital. Está infringindo normas que protegem os direitos fundamentais.
Outros casos semelhantes já foram decididos na Justiça, e o entendimento é praticamente unânime: quando candidatos de cotas recebem uma classificação superior à obediência para uma ampla concorrência, eles têm o direito de serem convocados por essa lista. Isso é uma forma de considerar seu esforço e garantir que o sistema de cotas funcione de forma justa.
Um exemplo importante é o que ocorreu na RMS 62.185/RS, um caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nele, um candidato cotista foi preterido em um concurso público, mesmo tendo nota superior a outros convocados. A decisão foi clara: ele tinha direito à nomeação porque a administração pública não poderia ignorar as regras previstas no edital e na legislação.
Além disso, a Súmula Vinculante 44 do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelece que qualquer restrição ao acesso de pessoas com deficiência a cargos públicos, fora do que está previsto na lei, é inconstitucional. Portanto, decisões como a de ignorar a lista de ampla concorrência não encontram respaldo legal.
Um dos pontos mais preocupantes dessa situação é o risco de dano irreparável. O Curso de Formação é uma etapa obrigatória para a nomeação no cargo. Se os candidatos PcDs não forem convocados a tempo, eles perderão a chance de assumir a vaga, mesmo tendo conquistado o direito com esforço e méritos.
Isso não apenas gera prejuízo individual para esses candidatos, mas também enfraquece a confiança no sistema público de seleção. Afinal, como confiar em um processo exclusivo quando as regras não são respeitadas?
Esse caso não é apenas sobre os candidatos PcDs que ficaram de fora do concurso. É um lembrete de que existem regras para serem cumpridas, especialmente quando estamos falando de políticas públicas que visam reduzir desigualdades históricas.
O Brasil ainda enfrenta muitos desafios para garantir que pessoas com deficiência tenham oportunidades iguais no mercado de trabalho. Quando surgem obstáculos como esse, é essencial que sejam corrigidos, não apenas em respeito aos direitos dessas pessoas, mas também para que possamos avançar como uma sociedade mais justa e inclusiva.
No final das contas, respeitar o mérito de cada candidato e garantir a inclusão não são objetivos opostos. Pelo contrário: são partes do mesmo processo de construção de uma sociedade onde todos têm a chance de alcançar o que merecem. E essa chance começa quando as regras são aplicadas de forma justa.
* Jairo Bianeck é Advogado dedicado ao direito das Pessoas com Deficiência e Direito de Família.
Fonte: https://bianeck.com.br/