OPINIÃO
- * Por André Naves
A impunidade se revela como um dos maiores entraves à consolidação dos Direitos Humanos, despojada da promessa de dignidade e autonomia que deveriam permear cada aspecto da vida em sociedade. Ao assumir o papel de catalisador do descaso institucional, ela não apenas fragiliza o pacto social, mas torna a própria existência humana refém de um sistema que falha em responsabilizar os indivíduos por seus atos.
É na intersecção entre o dever de responsabilização e a proteção das individualidades — que representam tanto as potencialidades quanto as fragilidades de cada pessoa — que se instala a verdadeira essência dos Direitos Humanos. No fim, a concretização dos Direitos Humanos dá condições ao protagonismo individual, isto é, dar a cada pessoa as condições para que elas decidam, por si mesmas, as melhores maneiras e estratégias para que se desenvolvam.
Num país em que os fundamentos constitucionais garantem a vida plena, a liberdade, a igualdade, a propriedade e a segurança, a impunidade emerge como um agente corrosivo da confiança da sociedade na Justiça e nas instituições do Estado. Quando se diz “a polícia prende, mas a justiça solta!”, ecoa na coletividade a sensação de que os direitos individuais são sistematicamente negligenciados. Cada cidadão, na busca de seu desenvolvimento integral, depende da existência de um aparato estatal que, além de proteger, responsabilize aqueles que, ao desrespeitarem suas obrigações, atentam contra a dignidade alheia.
Ou seja, os poderes da República têm falhado miseravelmente na promoção dos Direitos Humanos. É que de acordo com os entendimentos jurisprudenciais construídos a partir de textos normativos desconectados com a realidade social brasileira, a lassidão e a permissividade com a criminalidade imperam. Essa postura, além de desconsiderar o maior Direito Humano, qual seja, o Dever Individual de Responsabilidade pelos atos cometidos, também gera essa perplexidade social.
Essa desconsideração do dever individual de responsabilidade pelos atos cometidos acaba por desconstruir a autonomia individual: é como se a pessoa fosse desconsiderada em sua individualidade e ficasse ao sabor da carestia, da falta de educação, saúde, assistência social… Ou seja, o indivíduo perde completamente sua individualidade, sua humanidade, e passa a ser entendido como um mero objeto sem vontade própria. Repetindo, se a pessoa humana é livre para cometer atos, deve ser apta a ser responsabilizada pelas consequências deles.
Por outro lado, a perplexidade social acaba gerando maior violência social, como, por exemplo, o aumento expressivo de linchamentos e de discursos recheados de barbárie e violência (“bandido bom é bandido morto” e outros do tipo). Esse fenômeno acaba por normalizar a violência como solução simplista e falsa para os problemas sociais. Disso decorre o aumento da violência policial, da violência de gênero, da homofobia, contra as pessoas com deficiência, e de tantos outros preconceitos criminosos e violentos.
Isso significa que o fenômeno da impunidade tem como consequência direta a normalização de violentos discursos e atitudes simplistas frente aos problemas sociais. Testemunhos de comunidades marcadas pela violência revelam que, ao ser eximido das consequências de seus crimes, o infrator contribui para o aumento da violência policial, da agressão contra minorias e até mesmo de discursos de ódio, que incentivam a mesma brutalidade dos atos cometidos.
Assim, os grupos mais vulneráveis — frequentemente aqueles que já enfrentam a marginalização social e a exclusão — acabam sendo os primeiros a sofrer os efeitos devastadores desse sistema permissivo. Em outras palavras, a crise que se instala se manifesta, principalmente, na deterioração das condições de vida das populações marginalizadas. Em contextos urbanos onde a sensação de insegurança predomina, a falta de respostas assertivas a crimes e violências gera um ciclo autossustentável: a ausência de punição intensifica o desamparo e a exclusão, enquanto a própria sociedade se vê compelida a buscar soluções extrajudiciais, à margem do direito, para restabelecer uma ordem que a proteja.
Diante desta realidade, impõe-se que o Estado reverta a postura condescendente diante da criminalidade, resgatando o comprometimento com os Direitos Humanos e a promoção do protagonismo individual. São necessárias, urgentemente, medidas que promovam a valorização dos profissionais da segurança, a revisão dos entendimentos jurisprudenciais que atualmente favorecem a impunidade e, sobretudo, políticas que transformem os ambientes prisionais de espaços de coerção em centros de reintegração social.
A transformação de um sistema fragilizado passa, inevitavelmente, pelo voto consciente e pela participação ativa de uma sociedade que se recusa a aceitar a omissão institucional. Afinal, os Direitos Humanos não são meras abstrações legais, mas fundamentos imprescindíveis para que cada indivíduo possa, de fato, exercer sua liberdade e desenvolver suas potencialidades. Assim, reestabelecer a confiança na Justiça é, sobretudo, um imperativo ético e social que, se negligenciado, perpetua a violação dos direitos básicos que nos definem enquanto seres humanos.
Em síntese, a impunidade, ao negligenciar o dever de responsabilizar aqueles que atentam contra o bem comum, desumaniza as relações e afasta o sonho de uma sociedade verdadeiramente igualitária e segura. O caminho para a superação deste flagelo passa inevitavelmente pela construção de um sistema que, de forma rigorosa e eficaz, puna os abusos e, simultaneamente, replique a esperança de um futuro em que os Direitos Humanos sejam, de fato, o âmago da convivência social.
* André Naves é Defensor Público Federal formado em Direito pela USP, especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social; mestre em Economia Política pela PUC/SP. Cientista político pela Hillsdale College e doutor em Economia pela Princeton University. Comendador cultural, escritor e professor (Instagram: @andrenaves.def).