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Manifesto da Abraça sobre o PL 3035/2020

Manifesto da Abraça sobre o PL 3035/2020

O Diário PcD teve acesso a um manifesto da ABRAÇA – Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas “contundente em defesa da educação inclusiva e dos direitos das pessoas com deficiência. O Projeto de Lei nº 3.035/2020 gera preocupações, a Abraça reforça seu compromisso com o diálogo, a inclusão e a dignidade das pessoas com deficiência. A Abraça repudia atitudes autoritárias que tentam limitar as vozes das organizações de pessoas com deficiência. O respeito à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é central em sua luta. Junte-se à Abraça na defesa de uma educação inclusiva e no reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência. Nada sobre nós, sem nós”

Izabel Maior, ex-Secretária Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, afirmou ao Diário PcD que “assino junto com o manifesto da Abraça, completo e explicativo o suficiente para mostrar que o PL 3035/2020, demais projetos de lei apensados e texto do substitutivo não respeitam os direitos constitucionais das pessoas que pretendem proteger. A manifestação denuncia a forma antiga de decidir pelas pessoas com deficiência, o que é inaceitável e constitui discriminação ou capacitismo. A tramitação apressada de um tema tão sensível sem a voz das pessoas autistas não pode prosperar. Vamos debater em todos os estados, usando linguagem simples, comunicação acessível e sobretudo ouvir os usuários da política de educação inclusiva.

Confira a íntegra do manifesto:

Nós, membros da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas – ABRAÇA, desejamos expressar nossa profunda preocupação em relação ao Projeto de Lei nº 3.035/2020, de autoria do ex-deputado federal Alexandre Frota (Fed. PSDB-Cidadania/SP) e atualmente sob relatoria do deputado federal Duarte Júnior (PSB/MA). O teor do referido Projeto de Lei, aliado à sua tramitação açodada, desprovida da participação efetiva dos movimentos em prol das pessoas com deficiência, assim como a persistente proposição de abordagens não convencionais, exemplificado pela introdução do atendente terapêutico no contexto educacional, instiga um alerta acerca das possíveis retrocessos iminentes. Tais elementos suscitam a apreensão sobre o que consideramos mais um ataque à educação inclusiva no Brasil. 

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) (BRASIL, 2008) encontra sua fundamentação em sólidos alicerces teóricos, políticos e jurídicos, resultado de décadas de mobilização e construção de movimentos sociais constituídos por pessoas com deficiência, seus familiares, educadores, pesquisadores e defensores da educação emancipatória. Nesse contexto, merecem destaque a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) como um pilar político e o artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) (ONU, 2006) como um fundamento legal. Estes referenciais, fundamentados no modelo social da deficiência, efetivamente rompem com o paradigma educacional segregacionista.

A CDPD foi ratificada pelo Brasil com status de Emenda Constitucional por meio do Decreto Federal nº 6.949/2009 e, como tal, elevou o nível de reconhecimento de direitos das pessoas com deficiência, a partir de uma perspectiva de “inclusão plena” (BRASIL, 2009). Este cenário não passou despercebido pelos movimentos em prol da educação inclusiva que, mais de uma vez, atuou junto ao Supremo Tribunal Federal quando o direito à inclusão escolar se viu ameaçado: na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.357, contra a vontade da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, quando foi abolida a possibilidade cobrança de taxas extras e se definiu que as medidas de apoio devem ser garantidas pela escola; e quando, vejam só, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 6.590, na qual se contestava como o Decreto Federal nº 10.502/2020,  justamente por desvirtuar a PNEEPEI e o conceito de inclusão, bem como por ter sido um instrumento elaborado sem a devida participação dos movimentos sociais. A Abraça se orgulha de ter atuado em ambas as ações como amicus curiae, ajudando a fazer valer o direito constitucional à educação inclusiva.

Consideramos a contextualização do histórica de suma importância para o atual debate, pois possui o potencial de prevenir a reiteração de questões previamente abordadas e resolvidas, permitindo, em vez disso, direcionar esforços para o progresso e fortalecimento efetivo da educação inclusiva. 

É importante ressaltar também que, desde a deposição da então presidenta da República, Dilma Vana Rousseff, em agosto de 2016, os investimentos federais da PNEEPEI foram interrompidos, não ocorrendo mais, portanto, a implementação de novas salas de recursos multifuncionais, investimentos em formação continuada, indução à produção de conhecimento, reconhecimento e, muito menos, o incentivo a boas práticas de inclusão. Nesse sentido, antes de se contestar a eficácia de uma política que produziu resultados indiscutíveis, torna-se urgente apontar os desdobramentos decorrentes de uma ação governamental deliberada no sentido de desmantelar essa política. Compreendendo que tal desmantelamento resulta, por consequência, na desvalorização da política perante a população. 

Recentemente, o Ministério de Estado da Educação (MEC), através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), estabeleceu a Comissão Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (CNEEPEI), da qual a Abraça é membra. O MEC também divulgou um plano visando revitalizar a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), tal como delineada em 2008, com investimento substancial em todas as suas áreas. Trata-se, ademais, de importante decisão política do atual governo, alinhando-se aos compromissos internacionais assumidos por meio da ratificação da Convenção e consignados na Lei Brasileira de Inclusão (2015).

Em relação ao Projeto de Lei nº 3.035/2020 e à fase atual de sua tramitação, destaca-se que o deputado federal Duarte Júnior (PSB/MA) persiste na solicitação de regime de urgência, o que confere à proposta a possibilidade de ser votada a qualquer momento. Os movimentos representativos das pessoas com deficiência e defensores da educação inclusiva expressaram preocupação e, em alguns casos, repúdio quanto ao conteúdo do projeto, que diverge dos princípios consagrados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), além de denunciar a falta de um diálogo substancial com os movimentos sociais a respeito de um tema tão sensível.

A principal inquietação concentra-se na implementação de uma nova figura de apoio no ambiente escolar, o Atendente Terapêutico (AT). Este projeto determina que a escola permita a atuação do AT, sem estabelecer um vínculo funcional, o que por sua vez exime tanto escolas públicas quanto particulares da responsabilidade de arcar com os custos da contratação e da atuação desse profissional. Conforme anteriormente mencionado, esse assunto já passou pelo crivo do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5357. Nesse contexto, a cobrança direta ou indireta de valores adicionais foi julgada inconstitucional.

Uma outra questão importante a se destacar sobre esse tópico, é que o AT tem sido extensivamente anunciado e promovido como se fosse uma função acoplada e indissociável das abordagens que se apoiam na metodologia ABA, sigla em inglês para Análise do Comportamento Aplicada. Nos últimos anos, os defensores dessa técnica têm atuado junto aos planos de saúde e aos legisladores como dizendo como ser a “única terapêutica baseada em evidências para pessoas com transtorno do espectro autistas” (SIC) cuja proposta é modelar e controlar comportamentos dos autistas para que ele fique indistinguível de uma pessoa neurotípica. No entanto, ao redor do mundo, muitas pessoas autistas, falantes e não falantes, relatam o sofrimento que é ser submetido a essa técnica que, com frequência, não respeita a subjetividade e o jeito de ser de quem com ela é tratado. 

Recentemente, a Associação Médica Americana emitiu uma nota denunciando uma série de abusos e violações dos direitos fundamentais a partir do uso da metodologia ABA.  Isso lança luz sobre as preocupações éticas e práticas associadas ao emprego dessa abordagem, levando em consideração os impactos sobre o bem-estar e a autodeterminação das pessoas autistas.

Ocorre que, para controlar o comportamento das pessoas autistas, prescreve-se um plano de terapêutico exaustivo, com até 40 horas semanais, o que implica em custos altíssimos que serão assumidos pela família ou pelos planos de saúde, na esperança capacitista de que sua criança autista seja normalizada. Por outro lado, tal carga horária de intervenção terapêutica só é possível abrangendo o tempo reservado à escola, uma vez que a possibilidade de espaços segregados já não existe. Desta forma, restou a tentativa de imiscuir o AT na política educacional, desvirtuando-se outra vez o significado e propósito da inclusão.  

A Abraça esteve representada pelo nosso diretor técnico Alexandre Mapurunga, no último dia 29 de agosto de 2023, em reunião com o deputado Duarte Junior e parte das organizações membras do CNEEPEI, na tentativa de comunicar nossas preocupações relacionadas. No entanto, o parlamentar se colocou de maneira bastante agressiva e refratária aos argumentos técnicos e contextuais aqui apontados, desqualificando críticas pertinentes e tentando direcionar o posicionamento das organizações ali representadas para uma aceitação que não havia sido verbalizada. 

A Abraça reconhece e respeita as prerrogativas inerentes a um mandato eleito por meio do voto popular. A organização busca manter um diálogo construtivo e de alto nível com os representantes eleitos pelo povo. No entanto, a Abraça considera inadmissível e inaceitável que qualquer indivíduo, independentemente do cargo que ocupa, tente limitar a liberdade de expressão das prerrogativas legítimas da organização. A Abraça é uma organização de pessoas com deficiência que fundamenta sua luta nos princípios estabelecidos na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). Atitudes autoritárias e capacitistas merecem e terão nosso repúdio. 

Na referida reunião, após apelo das organizações ali representadas, o deputado relator da matéria disse que aguardará pelo menos até o dia 19 de setembro de 2023 para apresentar seu relatório e submeter o PL 3035/2020 a votação, solicitando notas técnicas para contribuir com o processo.  

Nesse contexto, apontamos os seguintes marcos importantes, que deveriam nortear essa discussão:

  • Em seu artigo 4.3, que trata das obrigações gerais assumida pelo Estado Brasileiro,  a CDPD diz que na “elaboração(…) de legislação e políticas para aplicar a presente Convenção e em outros processos de tomada de decisão relativos às pessoas com deficiência, os Estados Partes realizarão consultas estreitas e envolverão ativamente pessoas com deficiência, inclusive crianças com deficiência, por intermédio de suas organizações representativas”, grifo nosso. Infelizmente, o prazo exíguo estabelecido para discussão, o formato desprovido de formalidade adotado, bem como a persistente desqualificação dos posicionamentos manifestados pelas organizações representativas de pessoas com deficiência por parte do relator do projeto, mostra, que no atual estágio de discussão, há um total desrespeito dessa cláusula constitucional. 
  • No seu Comentário Geral nº 4, sobre Educação Inclusiva, o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU afirma que as “barreiras que impedem o acesso à educação inclusiva para pessoas com deficiência podem ser atribuídas a diversos fatores, incluindo: a)   incapacidade de compreender ou implementar o modelo de direitos humanos da deficiência, segundo o qual as barreiras dentro da comunidade e da sociedade são responsáveis pela exclusão, não os impedimentos pessoais das pessoas com deficiência”. Percebe-se, todavia, a persistente predominância do chamado “modelo médico da deficiência” norteando as discussões do Projeto de Lei, mesmo que escamoteado sob alcunha de “recurso de inclusão”, como no caso da proposição do Atendente Terapêutico.
  • No seu Comentário Geral nº 7, o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU esclarece que as organizações de pessoas com deficiência (OPD) referidas no artigo 4.3 da CDPD, que devem ser consultadas na produção de legislação e políticas, são aquelas formadas e lideradas pelas próprias pessoas com deficiência, isso não inclui associações de pais ou profissionais que atuam na área. Esse dispositivo constitucional deriva da construção de uma perspectiva política do modelo social da deficiência. Infelizmente, a Abraça enquanto organização nacional de pessoa com deficiência, composta e liderada por pessoas autistas, a despeito de sua tentativa de diálogo com o relator do projeto, tal como outras OPD, têm tido participação preterida em favor dos interesses de categorias profissionais e de pais que são iludidos com a perspectiva de “eliminação dos sintomas” autistas.

Ante o exposto, nos posicionamos fortemente contra o teor do PL relatado pelo deputado federal Duarte Júnior, do PSB/MA, em especial, mas não apenas, no que se refere a introdução do atendente terapêutico na política de educação, mas apontando a necessidade de uma escuta mais ampla e qualificada dos movimentos de pessoas com deficiência em defesa da educação  inclusiva.

Brasília, 31 de agosto de 2023.

Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça)

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