- * Por Carolina Ignarra
Não tem um ano sequer que a Lei de Cotas não sofre alguma ameaça. Novamente, o Projeto de Lei 1231/2015 – do deputado federal Vicentinho Junior – que estava estacionada, volta a tramitar na Câmara dos Deputados nas últimas semanas e vem com o objetivo de flexibilizar a obrigatoriedade de contratação de pessoas com deficiência pelas empresas, como prevê a Lei de Cotas nº 8.213, de 1991.
As empresas, que já não cumprem a Lei de Cotas pela sua totalidade, neste projeto de lei ficariam ainda mais à vontade para não a cumprir, já que propõe mecanismos de facilitação para as empresas que não alcançam a cota mínima.
Isso representa um retrocesso e um incentivo ao capacitismo estrutural, que oprime e exclui pessoas com deficiência do mercado de trabalho por preconceito e por serem avaliadas por suas deficiências ao invés de serem selecionadas por seus talentos e habilidades para exercerem uma função.
Avançar já foi desafiador, temos mais de 32 anos de Lei de Cotas e um pouco mais da metade das cotas cumpridas e é válido ressaltar que avançar pós retrocesso é sempre mais desafiador ainda.
Infelizmente, o Brasil ainda é um país onde as empresas contratam pessoas com deficiência por exigência da Lei de Cotas. Seria ótimo se não precisássemos dela para oferecer trabalho e desenvolvimento profissional para as pessoas com deficiência, mas não é essa a nossa realidade ainda e as estatísticas comprovam isso.
O Brasil tem cerca de 18,6 milhões de pessoas com deficiência, correspondendo a 8,9% da população, de acordo com dados do IBGE. No entanto, esses números divergem significativamente das estatísticas globais que indicam uma taxa de 15% (um bilhão de pessoas com deficiência).
Segundo a Relação Anual das Informações Sociais (RAIS) de 2021, 9 milhões de pessoas com deficiência estão aptas para o trabalho, mas apenas 521 mil possuem empregos com carteira assinada. Cerca de 8,5 milhões de pessoas com deficiência aptas para o trabalho ainda não foram contratadas. Agora imagine como ficaria esse número se não fosse a Lei de Cotas?
É inegável a contribuição da lei para a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Ela tem sido o primeiro motivo de abertura de vagas nas empresas. Flexibilizá-la tem efeito unilateral de beneficiar as empresas, eximindo elas da responsabilidade dessa inclusão.
Incluir uma pessoa com deficiência traz um avanço comprovado de inovação, de cultura de inclusão e respeito nas equipes. Quem não convive com as pessoas com deficiência não é capaz de criar para elas produtos e serviços, não as considera como consumidoras que de fato são.
A Lei de Cotas trouxe a mudança de perspectiva a respeito das deficiências, que passam a ser consideradas como uma integração entre questões médicas e sociais e não apenas um problema de uma ou da outra natureza. Sob esse viés, o meio deve promover acessos e oportunidades às pessoas com deficiência, com o objetivo de reduzir as dificuldades consequentes das nossas características.
Dar emprego e oportunidade de crescimento na carreira da pessoa com deficiência é um avanço cultural contra o capacitismo contra muitos que contabilizam uma vida inteira de exclusão, que começa lá na idade escolar, por falta de acessibilidade, por falta de humanidade.
A pessoa com deficiência repudia toda e qualquer iniciativa que venha ainda mais oprimir ou impor novas barreiras para uma vida mais justa, acessível e digna para todos. Nenhuma empresa, nos dias de hoje – quando se busca a humanização das lideranças, das relações, focadas em uma atuação ESG – deveria aceitar uma atitude tão retrógrada e que prejudica uma jornada já em construção, de respeito a todos os seus públicos.
A Lei de Cotas não é um privilégio. Ela busca transformar aos poucos o conjunto de valores e crenças de todo o mercado de trabalho em prol de uma sociedade mais justa para todos. Há quem acredite que ainda serão necessárias mais quatro décadas de cumprimento da Lei de Cotas para atingirmos uma situação mais favorável e equilibrada na geração de oportunidades de trabalho para as pessoas com deficiência.
Eu, enquanto pessoa com deficiência, não defendo a eternização da Lei de Cotas, defendo que é uma medida de equidade e reparação social, transitória. Acontece que ainda não alcançamos os resultados para recuar, nem nas contratações e tão pouco na qualidade das nossas carreiras. Menos de 1% dos cargos de liderança das 500 maiores empresas do Brasil estão ocupados por pessoas com deficiência.
A inclusão é um processo que humaniza a empresa, e essa tem sido uma demanda explícita da sociedade, porque é necessária para manter contratos, clientes etc. Vai além de evitar multas e busca melhorar cada vez mais a organização como empresa cidadã. É urgente e fundamental para o país criar um ambiente seguro para as pessoas com deficiência. Um governo sério e comprometido com a população deve ‘enterrar’ de vez toda e qualquer iniciativa capacitista, retrógrada, que reforça estereótipos e promove inseguranças para a empregabilidade da pessoa com deficiência. Reforço que a Lei de Cotas é uma medida transitória de equidade para transformar uma realidade de desigualdade social. É importante ressaltar que, na jornada da inclusão a pessoa com deficiência ainda precisa percorrer o dobro do trajeto para chegar na metade do caminho. Até quando sobreviveremos a tantos ataques?
- * Carolina Ignarra é CEO e sócia fundadora do Grupo Talento Incluir, ecossistema que reúne 4 negócios sociais: Talento Incluir, Talento Sênior, UinHub e UinStock. Está entre as 20 mulheres mais poderosas do Brasil, eleita pela revista Forbes em 2020. Em 2018, foi eleita a melhor profissional de Diversidade do Brasil segundo a revista Veja. É líder do comitê de inclusão de pessoas com deficiência da ABRH SP, colunista da revista Gestão RH e do Meio & Mensagem (Women to Watch), conselheira da Integrare e da APP (Associação de Profissionais de Propaganda).