OPINIÃO
- * Por Paula Ayub
Adriana Regina, branca, 43 anos, residente do Itaim Paulista, mãe de três filhos pretos e periféricos. Um autista, Jorge, 10 anos.
Meu filho tem auto identidade, sabe que é preto e seus brinquedos são o Cebolinha e a Mônica pretos. É preto e tem marcas esbranquiçadas nas pernas pela auto lesão.
Drica, como é conhecida no ativismo do seu território, não tem os dentes da frente. Perdeu os dentes em uma das inúmeras tentativas de contenção de crises heterolesivas do filho. Segundo ela, hoje sabe fazer a contenção sem se machucar e sem machucar o filho. Quando passou a usar o CBD, Jorge, teve controle das crises, mas isso ficou no passado. Não conseguem mais pagar a medicação que tanta ajuda trazia.
O marido trabalha e não atinge o limite para que seu filho receba o LOAS. Então Jorge perde o CBD, perde a medicação da anemia por conta da seletividade alimentar, perde as consultas e terapias porque tem crises na rua e a mãe não tem dinheiro para chamar um carro de aplicativo. Ou melhor, não tem nem internet para pedir o carro de aplicativo. Sentam na sarjeta e esperam a crise passar.
Drica diz que ama o SUS. Ela declara esse amor pela universalidade dele. Porém, quando o SUS é sobre saúde mental, ‘abre-se um abismo’. Adriana diz que os profissionais são blindados, e os usuários precisam rastejar, pular ou escalar esse abismo para conseguirem uma migalha de atendimento. Sim, migalha: um atendimento semanal de 30 minutos.
Adriana tem lúpus ativo, uma doença degenerativa na coluna e mais dois filhos para criar além de Jorge. Ela e o marido pagam um plano de saúde para seu filho autista de R$ 207,00 e uns quebrados para que ele tenha atendimento. Faz ABA, hoje quase não bate mais em ninguém e ela aprendeu muito com os profissionais. Precisou judicializar o plano para poder receber o que tem direito, porque não quer mudar o filho, mas sabe que o ele precisará ser autônomo no futuro e quer prepara-lo.
Essa mulher aguerrida, ‘entrou na luta pela própria luta’. Não teve outro jeito. Hoje faz parte do Conselho do Orçamento Cidadão e, juntos votaram para a criação de um NAISPD no território. O Itaim Paulista possui cerca de 400.000 habitantes. Segundo ela relata, a SMADS não conseguiu identificar a necessidade do equipamento: ‘Não há provas da existência de nossos filhos’. Não há dados, portanto, nada de políticas públicas, nada de fiscalização, nada de oferecer CBD ou R$ 207,00 mensais para que as famílias possam seguir o tratamento de seus filhos. E sabe porquê? Porque eles não existem.
A invisibilidade é um sentimento avassalador. Aniquila, mata lentamente. Destrói a esperança.
Dignidade é palavra de rico. Quem vive de vaquinha e rifa pra comprar remédio não pode nem sonhar em se sentir humilhado. Todo mês a mesma coisa, passando o chapéu para pagar medicação, são 4 tipos diferentes e 12 comprimidos ao dia e plano de saúde: R$ 207,00. Autismo não é coisa pra pobre mesmo. Mas se a família de Jorge é pobre, como ele não pode receber o LOAS? Porque sua mãe não pode ir na defensoria pública?
Esse é nosso Brasil das incoerências, das regras que beneficiam tão poucos e para poucos abre as portas e os canais de televisão. Uma família com um benefício negado e que precisa fazer rifa para pagar 207,00 reais para um plano de saúde prover o atendimento que o Estado nega a dar. Nega, embora as leis exijam o contrário. Nega, mas diz que que dá. Nega e alega que não tem necessidade no território. Nega, porque sonega dados.
São R$ 207,00 que mudam a vida de Jorge. E de quantos outros Jorges não mudaria?
Ah… mas eles não existem. Deixa pra lá.
- * Paula Ayub é psicóloga clínica, terapeuta de família, diretora do Centro de Convivência Movimento – local de atendimento para autistas –, autora de vários artigos e capítulos de livros, membro do GT de TEA da SMPD de São Paulo e membro do Eu me Protejo (Prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2020, na categoria Produção de Conhecimento).
FONTE: Artigo originalmente publicado em https://www.canalautismo.com.br/