OPINIÃO
- * Por Edilayne Ribeiro – Colunista ASID Brasil
Dias atrás eu estava organizando o roteiro de uma palestra que eu ministraria sobre interseccionalidade e pessoas com deficiência. Além do conteúdo-base – conceito de intersecção, conceito de marcador social, conceito de deficiência, etc –, eu investi em apresentar os impactos que a análise interseccional ou a falta dela podem gerar para uma pessoa com deficiência, e é isso que transformarei em texto para contar aqui!
A interseccionalidade é, por definição, a conceituação de um problema social a partir da interação entre dois ou mais eixos, ou seja, o entendimento de uma estrutura social não de forma isolada, mas em coexistência com outras estruturas.
Esse não é um conceito novo, apesar de ser pouco falado. Debates sobre interseccionalidade surgiram a partir de movimentos feministas negros dos Estados Unidos e do Reino Unido, entre 1970 e 1980, e o termo foi sistematizado pela teórica e professora Kimberlé Crenshaw em 1989.
Assim sendo, entende-se a interseccionalidade como uma metodologia de análise, uma forma de conceber as características humanas e, com isso, os sistemas de opressão e discriminação que sofremos nos mais variados contextos.
Quando eu falo sobre “características humanas”, eu também posso usar o termo “marcadores sociais”, que nada mais é do que os atributos de uma pessoa que a demarcam como pertencente a um grupo específico na sociedade. A partir desses marcadores, nos conectamos com outros grupos sociais e, também, entendemos mais facilmente de onde vêm determinadas discriminações, diferentes tratativas, desigualdade, etc. Alguns exemplos de marcadores sociais são: gênero, sexualidade, raça, deficiência…
E o que a inclusão tem a ver com tudo isso? Quase tudo!
Quando falamos sobre pessoa com deficiência, não falamos apenas dela isolada, mas sim de uma pessoa que também pode ter outro marcador que a represente em outro grupo – exemplo: um homem negro autista; uma mulher com deficiência física lésbica; uma mulher gorda periférica com deficiência auditiva; dentre outros –, e que por conta disso é uma pessoa que além de sofrer capacitismo, também pode sofrer outros tipos de preconceito.
Portanto, vamos a algumas intersecções entre deficiência e outros grupos, e os impactos de não considerarmos essa intersecção:
Deficiência e gênero
Refere-se a como as experiências de viver com uma deficiência são moldadas pelas expectativas e normas de gênero. Isso inclui como homens e mulheres com deficiência enfrentam desafios específicos e recebem diferentes tipos de apoio e oportunidades.
Impactos ao não considerar a interseccionalidade
– Invalidação e fetichização do corpo; mulheres com deficiência são tratadas com assexuais e sem possibilidade de desenvolver uma relação romântica/sexual com alguém.
– Maior risco de violência física, sexual e emocional.
– Dificuldade no acesso à saúde e direitos relacionados, por falta de acesso a espaços de saúde sexual e reprodutiva, ambientes com pouca acessibilidade e profissionais não preparados para o atendimento.
Deficiência e sexualidade
Refere-se a como questões de orientação sexual são moldadas a partir da vivência de uma pessoa com deficiência, tanto em espaços sociais quanto relacionadas à própria concepção de sexualidade.
Impactos ao não considerar a interseccionalidade
– Invalidação das relações sociais, românticas e sexuais, partindo do pressuposto de que, se a pessoa com deficiência tem sexualidade, é apenas heteronormativa.
– Isolamento social e dificuldade para encontrar apoio adequado devido à falta de inclusão em espaços LGBT+ e de deficiência.
– Barreiras adicionais ao acesso a cuidados de saúde.
Deficiência e raça
Refere-se a compreender como as identidades raciais e étnicas interagem com a experiência de viver com uma deficiência.
Impactos ao não considerar a interseccionalidade
– Aumento da vulnerabilidade, falta de representatividade e dificuldade de inclusão social e econômica, potencializada pelo impacto que o racismo tem na sociedade.
– Maior barreira ao acesso a cuidados de saúde adequados, resultando em disparidades na saúde e menor expectativa de vida.
– Desproporcionalmente afetadas pela violência policial e sistema de justiça criminal, frequentemente sem acomodações adequadas para suas deficiências.
Deficiência e classe socioeconômica
Refere-se à forma como a condição socioeconômica de uma pessoa com deficiência pode influenciar seu acesso a recursos, oportunidades e serviços, bem como como a deficiência pode impactar a mobilidade social e econômica.
Impactos ao não considerar a interseccionalidade
– Dificuldade de mobilidade urbana, considerando que o transporte para pessoas com deficiência é escasso e/ou mais caro.
– Menor acesso a tecnologias assistivas e serviços de apoio devido ao custo elevado e falta de cobertura por seguros.
– Maior probabilidade de desemprego, resultando em instabilidade econômica e exclusão social.
Deficiência e saúde mental
Refere-se à maneira como as condições físicas e mentais interagem, influenciando o bem-estar geral, o acesso a cuidados e o apoio necessário para a saúde integral, conectando-se com sofrimentos psíquicos gerais e transtornos mentais.
Impactos ao não considerar a interseccionalidade
– Invalidação de sofrimentos psíquicos gerais (ex.: inseguranças, medos, isolamento social, vergonha…) que possam ter a ver com a deficiência e o social.
– Estigma duplo em relação à deficiência e saúde mental, levando à resistência em buscar tratamento e suporte adequado.
– Barreiras no acesso a serviços de saúde mental, resultando em cuidados inadequados e maior risco de agravamento das condições.
A partir de agora, portanto, ao perceber qualquer grupo social, eu te convido a pensar: quais marcadores compõem essas pessoas? Quais os desafios que elas enfrentam por conta disso? De que forma uma característica isolada se potencializa quando combinada com outra, fazendo com que além de capacitismo, essa pessoa enfrente sexismo, racismo, gordofobia, e outros…?
Nossas questões não vêm em formato isolado. O social tem um peso enorme na forma como nos relacionamos, como temos ou não acesso a direitos e oportunidades, ou simplesmente na forma de vivermos a vida. Pensar nos desafios de uma relação social é, automaticamente, pensar nos desafios de alguma outra – mesmo que nossa luta seja centralizada.
- * Edilayne Ribeiro é psicóloga, especialista em Neuropsicologia e mestra em Educação, membra da Comissão de Educação Inclusiva da Universidade Tuiuti do Paraná e palestrante nos temas pessoa com deficiência e sexualidade. Atualmente é Líder na ASID em Projetos de inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho.
- Sobre a ASID Brasil:
- A ASID Brasil é uma ONG que promove a inclusão socioeconômica da população com deficiência. Somos agentes empreendedores que alcançam a excelência realizando mudanças sociais movido a metodologias, estudos e inteligência plural.
Fonte: https://asidbrasil.org.br/