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  • sex. nov 22nd, 2024

Os olhos que formaram uma médica com tetraparesia 

Os olhos que formaram uma médica

Elaine Luzia dos Santos, acadêmica da Unioeste, é a primeira pessoa com tetraparesia a cursar Medicina no Brasil

O olhar ganhou significados inéditos para Elaine Luzia dos Santos, 33 anos, e para todos que dividem o cotidiano da estudante de Medicina. Com um olhar, uma piscada, um sutil movimento, Elaine se comunica com professores, colegas da turma, pacientes, familiares e amigos, que aprenderam a traduzir o significado de cada gesto. A desenvoltura que apresenta na comunicação hoje é fruto de uma longa caminhada de superação de dificuldades.

Em 2012, quando ingressou no curso de Medicina na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, no campus de Cascavel, Elaine já era formada em Farmácia pela mesma Instituição. Segundo ela, depois da conclusão do primeiro curso, em 2010, veio o sonho de fazer Medicina. “Decidi fazer por vontade de experimentar novas formas de ajudar os outros”, aponta.

Para realizar o sonho, Elaine fez um ano de cursinho, que contribuiu para a aprovação no vestibular de Medicina da Unioeste. Durante a graduação, ela enfrentava a difícil rotina de estudos que um aluno de Medicina precisa atravessar. Além das aulas curriculares, a estudante fazia parte de um grupo de pesquisa coordenado pelo professor e doutor Allan Araujo, coordenador do curso de Medicina da Unioeste. Além disso, Elaine ainda pleiteava uma vaga no programa de Mestrado em Biociência da Unioeste.

No entanto, no terceiro ano do curso, em novembro de 2014, a estudante sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), que acarretou na perda dos movimentos e da fala, uma condição de tetraparesia, e que apenas atrasou o sonho de se tornar médica. O acidente não impediu Elaine de seguir em frente no intuito de se formar em Medicina. Mesmo com todas as dificuldades, a estudante não perdeu a disposição para ir atrás dos seus sonhos, enfrentou e se adaptou à sua nova realidade.

As consequências que surgiram após o acidente viraram de cabeça para baixo a rotina familiar, principalmente dos pais: Dalva Alves dos Santos e Josué Barbosa dos Santos, que precisaram se mudar da pequena Diamante D’Oeste, com pouco mais de 5 mil habitantes, para a grande Cascavel. Desde o início, a família toda precisou fazer muito sacrifício para se adaptar a todas as novas necessidades. “A rotina é uma correria. Temos que acordar muito cedo mesmo para levar ela na faculdade. Além disso temos que dar água, levar no banheiro, dar comida, a comunicação é lenta porque ela soletra todas as palavras, não é fácil. Mas ela é muito resistente, ela pensou, ‘estou com um sonho de fazer medicina, o que a senhora acha?’ e eu falei, ‘minha filha, o sonho é seu’”, assegura a mãe com os olhos lacrimejantes.

Com muita garra e determinação, tanto de Elaine quanto da família de sete filhos, as dificuldades são vencidas todos os dias e ela está muito próxima de realizar seu sonho.

Comunicação

A comunicação humana vai muito além da fala, máxima que às vezes passa despercebida por aqueles que não precisam se fazer entender de outras maneiras. Se conectar com o mundo seria um desafio que Elaine teria que vencer e para o qual ela já tinha a solução: os olhos.

Enquanto ainda estava na Unidade de Terapia Intensiva – UTI, a estudante recebeu a visita de um colega de turma, que lhe apresentou uma ferramenta chamada “prancha alfabética” que possibilitaria que ela falasse e se expresse, sem nem mesmo utilizar as cordas vocais. A ferramenta consiste em uma tabela, dividida em 5 linhas, cada uma contendo um grupo de letras. Para formar as palavras e frases, Elaine pisca quando a intérprete diz a letra necessária para a construção daquilo que quer comunicar. 

O modelo original da ferramenta sofreu algumas alterações para otimizar o seu uso e facilitar a comunicação do cotidiano. Com estas pequenas mudanças no modelo, Elaine dominou e memorizou os grupos de letras em cerca de uma semana e dessa forma já podia se conectar de maneira mais eficaz com as pessoas ao seu redor. 

A irmã da estudante que sempre esteve ao lado dela e acompanhou todo o processo de volta para a Universidade, Elionésia Marta dos Santos, conta que Elaine já queria voltar às aulas e finalizar o ano letivo. “Assim que ela saiu do hospital, ela entrou em férias e já demonstrou uma preocupação em como ficariam as disciplinas para ela finalizar o terceiro ano, e ela queria já finalizar, na expectativa que ela tivesse uma melhora”, lembra.

Apoio pedagógico

 O retorno às atividades acadêmicas, em setembro de 2015, não foi uma tarefa fácil. Inicialmente, Elaine teve muita resistência por parte de algumas pessoas dentro do curso, que viam dificuldades na adaptação e inserção da estudante na rotina de estudos. No entanto, ela sempre lutou para realizar o sonho de ser médica e não desistiu, mesmo com a apresentação das dificuldades pelo caminho.

A Unioeste, por meio do Programa de Educação Especial (PEE), acompanhou todo o processo de retorno dela para a Universidade. “Fizemos algumas reuniões com o Colegiado e mostramos que ela tinha condições de concluir esse curso. A dedicação dela mostrou que era possível, inclusive convenceu a todos os docentes e os alunos do curso que é possível”, explica Ivã José de Paula do PEE.

Elaine será a primeira médica do Brasil a se formar com a condição física que apresenta. De acordo com o coordenador do curso de Medicina, Dr. Allan Araujo, o colegiado buscou experiências de outras universidades em situações semelhantes, mas que foi difícil encontrá-las. “Nós fomos atrás de ver essas experiências, mas elas praticamente inexistem, são poucas no mundo com alunos de Medicina. Então, nós mesmos teríamos que ir atrás para resolver a situação”, comentou. Conforme conta o coordenador, o Colegiado se reuniu com a Pró-Reitoria de Graduação e com o Programa de Educação Especial da Unioeste, que com um trabalho conjunto conseguiram encontrar uma solução para a questão.

A fim de adaptar o curso para as necessidades apresentadas por Elaine, o curso buscou a Assessoria Jurídica da Universidade para entender os procedimentos legais e as legislações que deveriam ser cumpridas a fim de formar a estudante, que sempre fez questão de participar de todas as atividades acadêmicas, tanto as de cunho teórico, como prático.  Além das estruturas adaptadas, como uma sala especial, os procedimentos de avaliação foram remodelados, como explica o Dr.Allan. “Existe uma legislação própria para alunos em condições especiais, onde você não pode cobrar algo que ele não vai conseguir utilizar. A Elaine, por exemplo, não tinha condições de fazer um procedimento em um paciente, mas ela possui total capacidade de descrevê-lo. E as avaliações dela sempre foram muito boas, o aproveitamento dela foi muito satisfatório durante toda a graduação”, exaltou.

Para atender a estudante nas aulas online e presenciais, nos atendimentos dentro do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP) e nas visitas aos pacientes, a Unioeste disponibiliza docentes de atendimento educacional especializado. Já estiveram com Elaine as pedagogas Vanderlize Simone Dalgalo, Aline Cristina Paro, Graciolinda Santana da Rosa, Silvia Elaine Bertuol, Letícia Nunes Goulart, Marciana Pelin Kliemann e quem acompanha ela hoje são Clarice Fabiano Costa Palavissini e Michele Lopes Leguiçaque está com Elaine há um mês e vai acompanhar a estudante até maio deste ano, quando conclui o curso. 

Michele, que veio do Rio Grande do Sul especialmente para trabalhar junto com Elaine, destaca como a força de vontade e a dedicação da estudante fizeram ela ser incluída verdadeiramente no ambiente acadêmico, participando de todas as atividades de maneira regular e tendo um bom relacionamento com professores e colegas.  “Essa persistência, a força e a vontade dela fizeram com que ela se comunicasse muito bem. Ela se faz entender, não apenas com os olhos, mas também com o corpo. Ela se coloca em comunicação com os outros e ela conseguiu quebrar a fronteira do olho, dando outras funções para ele além de apenas enxergar”, explica a docente. 

Aos poucos, a estudante foi sendo inserida em algumas matérias, e foi fazendo uma após a outra. “Ela não sabia em quanto tempo ela ia conseguir terminar o curso, mas ela foi realizando uma após a outra e nunca desistiu”, destaca a irmã de Elaine.

“Eu sou uma pessoa normal”

Todos que convivem com Elaine destacam a inspiração que ela é na vida de cada um deles por sempre lutar por seus sonhos. “Ela não sente o tamanho da proporção, a gente ficou no pé dela falando para mostrar a história dela porque é incentivadora, mas para ela é normal, ela escolheu ser normal”, frisa Isabella Alves Pereira, cuidadora da estudante.

Durante o período de internato médico de clínica cirúrgica, um dos mais complexos da graduação, Elaine teve uma reunião com o colegiado do curso, que apresentou a possibilidade de ela estar dispensada de algumas atividades no Centro Cirúrgico, devida a impossibilidade de realizá-las. No entanto, conforme conta com muita emoção o Dr.Allan, ela não quis saber de tratamento especial. “Vimos que para Elaine seria suficiente desenvolver atividades na Enfermaria e ficar meio período, sendo dispensada das ações no Centro Cirúrgico. Mas para nossa grata surpresa, ela não queria nada disso. A gente até se emociona com isso. Ela nunca pediu nada especial e com adaptação teve Elaine no Centro Cirúrgico, no Ambulatório. Ela fez aquilo que ela queria”, declarou.

Durante o período da pandemia, o colegiado ficou muito preocupado com a situação da estudante, que faz parte do grupo de risco e teria que desenvolver atividades dentro de um hospital. Entretanto, mais uma vez, a acadêmica não se deixou vencer pelas adversidades. Durante uma reunião com o coordenador do curso de Medicina, a família da estudante disse. “Quem decide as coisas da Elaine, é somente a Elaine. E ela quer voltar!”. E assim se fez, com toda a mobilização da Universidade para que ela continuasse o internato no interior do Hospital Universitário. Para resumir a trajetória da estudante durante os estágios e as atividades do internato, Dr.Allan disse. “A Elaine foi muito além da sua obrigação. Ela se desafiou. E também foi um desafio para nós, que aprendemos muito com ela. A Elaine não coloca limite, ela quer participar de tudo e isso nos deu um grande exemplo”, contou.

Enquanto exerceu o trabalho de supervisão das atividades de Elaine no HUOP, a professora Rubia Bethania percebeu que a inclusão da estudante no processo foi completa e natural. Ela garante que tudo foi feito para integrá-la ao grupo. “Aqui no internato de atendimento dos pacientes a gente trata com muita naturalidade, a Elaine é inserida em um contexto de ensino com muita naturalidade, como as coisas devem acontecer. Ela tem a questão intelectual muito apurada e é muito inteligente, as limitações são apenas de mobilidade, então criamos uma dinâmica para que pudéssemos inseri-la com a maior naturalidade”, explicou.

A docente que acompanha Elaine comenta que no início, tinha receio de como seria construída a relação entre as duas. “Eu tinha um pouco de medo em saber como ela iria se abrir comigo. Eu precisava deixá-la à vontade e desenvolver laços era necessário, pois eu iria ficar muito tempo com ela, além de ajudá-la a se locomover e a se posicionar na cadeira, por exemplo. Eu precisava entender qual era o limite dela”, explicou Michele. Mas logo o receio deu lugar à uma amizade, as duas construíram uma boa relação que vai além dos limites do HUOP e da Unioeste. “Ela me ensina todos os dias a perceber o olhar de uma maneira diferente, a perceber como ele possui diferentes significados, que vão além de apenas enxergar”, complementa Michele.

Para a irmã de Elaine, a estudante é que assumiu a liderança dos sonhos dela e motivou toda a família a lutar, junto com ela, pelos sonhos dela. “A gente não sabia a longo prazo como seria isso, mas a Elaine, com a determinação dela, nos guiou, ela liderou esse processo. O movimento dela, esse desejo de realizar o curso ela movimentou todo mundo, inclusive a família, colocou a gente em movimento para realizar o objetivo dela”, conta.

Quando perguntada sobre como é inspirar outras pessoas, Elaine respondeu emocionada. “Eu me sinto uma pessoa normal”.

Atuação na Medicina

Com a colação de grau marcada para maio, a estudante já escolheu a área em que vai se especializar e que se vê atuando no futuro: radiologia, na produção de laudos médicos. A escolha preza pela independência na hora da atuação profissional. “Por ser uma área que eu possa atuar usando todo o meu conhecimento sem depender tanto das pessoas”, 

 Durante os anos de graduação, o que mais marcou a estudante foi a relação que ela teve com os pacientes durante as aulas práticas e estágios. “O que mais chamou atenção foi o carinho com que os pacientes tratam. Eles me incentivam todos os dias a continuar”, comentou. Segundo a pedagoga Michele, Elaine é muito dedicada e independente. Durante os atendimentos, a acadêmica pede para Michele se retirar, para manter a ética do médico com seu paciente, permanecendo na sala apenas ela e o residente.

Aqueles que a acompanham no dia a dia sabem que durante a atuação profissional, Elaine vai se deparar com situações incômodas e desagradáveis, mas ressaltam que ela terá perseverança e coragem para encará-las. “Eu percebo nos corredores (do hospital) esse olhar de desconfiança, que infelizmente vão acompanhá-la por toda vida. Mas com a coragem que ela tem, eu tenho certeza que vai sempre vencer essa situação”, declarou a educadora, Michele Leguiça. 

Inspiração

Apesar de ser modesta quando perguntada sobre sua história, Elaine inspira as pessoas que cruzam seu caminho e que conhecem suas dificuldades e conquistas. Com todos os méritos, a acadêmica logo se formará em Medicina passando pelos exatos mesmos testes e provas que seus colegas de turma e isso traz orgulho para aqueles que estão ao lado dela. “Hoje a gente olha para ela na reta final e é como se fosse surreal, como se fosse uma história que estão me contando foi tanta coisa nesses anos todos, tantos altos e baixos, tantas dúvidas que realmente a gente fica mais do que feliz”, garante Elionésia.

“A rotina dela é bem puxada, é fácil ver ela aqui na faculdade, mas só Deus sabe o que ela tem que fazer para estar aqui no horário. A gente tenta estar sempre no horário, mas é uma correria, porque ela tem aula, tem fisioterapia, terapia”, comenta a cuidadora Isabella Alves. “Ela é um combustível diário”. 

Elaine é uma grande inspiração principalmente para o irmão Mário Lucas do Santos, que é médico. “É difícil descrever, ela é uma pessoa fora de série, desde antes do AvC ela sempre foi uma pessoa alegre e que busca excelência em tudo que faz, ela foi muito insistente. Eu confio cem por cento no diagnóstico que ela faz, inclusive quando eu estou em dúvida em algum caso a gente conversa junto e até discutimos”, aponta.Para a pedagoga Michele, o trabalho desenvolvido juntamente com Elaine é extremamente gratificante. “Eu tenho para mim que cada um dá um significado diferente para a palavra sucesso. Para mim, chegar aqui na Unioeste, trabalhar com a Elaine e ver como ela está integrada aos processos da graduação de maneira incrível, é o significado de sucesso”, declarou.   

Texto: João Marochi e Milena Griz

Fotos: ACS Unioeste e Arquivo Pessoal 

https://www.unioeste.br/

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