OPINIÃO
- * Por Por Júlio Facó
Resumo da Contribuição:
A proposta de resolução da ANAC, embora avance em aspectos técnicos e operacionais, fere
frontalmente a autonomia das pessoas com deficiência, especialmente ao permitir que
transportadoras imponham restrições subjetivas ao embarque desacompanhado de
passageiros com deficiência intelectual, sensorial ou motora severa (art. 17). Essa previsão
retrocede frente aos direitos assegurados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (CDPD), ratificada pelo Brasil com status constitucional (Decreto no 6.949/2009), e
na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei no 13.146/2015).
Ao delegar ao transportador aéreo a prerrogativa de julgar a capacidade de um cidadão com
deficiência de viajar sem acompanhante, a minuta viola os princípios da presunção de
capacidade, da igualdade e da dignidade humana. A imposição de acompanhante, ainda que
sob a alegação de segurança, deve ser excepcional, tecnicamente fundamentada e sujeita à
revisão por autoridade pública competente, e não aplicada por critério unilateral e
potencialmente capacitista do operador aéreo.
Além disso, a redação atual não assegura mecanismos de contraditório, recurso ou
transparência no processo de avaliação, ferindo o devido processo legal.
Reforçamos a necessidade de substituição do artigo 17 por dispositivo que respeite a
autodeclaração de capacidade e as decisões de vida independente da pessoa com
deficiência, tal como já adotado em países signatários da CDPD como o Canadá, Reino Unido,
Finlândia e Austrália, e conforme boas práticas da IATA.
Propostas de Alteração (Resumo Objetivo):
- Revogação do artigo 17 da minuta e sua substituição por um dispositivo que:
o Assegure a presunção de capacidade da pessoa com deficiência, inclusive para
viajar sozinha;
o Estabeleça que o embarque só poderá ser negado mediante laudo médico
prévio e independente ou parecer técnico de autoridade sanitária, nunca por
julgamento subjetivo da companhia aérea. - Inclusão de direito ao contraditório e à revisão administrativa imediata das recusas de
embarque por alegada “falta de segurança operacional”. - Definição de protocolos claros, públicos e auditáveis, com ampla participação das
organizações de pessoas com deficiência, para qualquer decisão que envolva restrição
à autonomia do passageiro. - Inclusão, nos treinamentos obrigatórios (art. 43), de formação específica sobre os
direitos humanos das pessoas com deficiência, com base na CDPD, com participação
obrigatória de pessoas com deficiência como formadoras. - Correção terminológica: substituição da sigla PNAE por PCD ou uso do termo completo
“pessoa com deficiência” conforme a LBI e a CDPD, evitando confusão com o Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). - Determinação de que nenhum procedimento de embarque poderá submeter a
pessoa com deficiência a constrangimento público, especialmente pessoas
ostomizadas ou com deficiência invisível — o que exige formação humanizada da
equipe de segurança e estrutura de privacidade adequada nos aeroportos.
Justificativa Técnica, Jurídica e Social:
A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada com
equivalência constitucional no Brasil, estabelece nos artigos 3o e 12o que:
“A deficiência não pode ser usada como justificativa para a limitação de direitos, e toda pessoa
com deficiência deve ter reconhecida sua capacidade legal em igualdade de condições com as
demais em todos os aspectos da vida.”
A imposição de um acompanhante por critérios operacionais de segurança, sem base técnica
independente, afronta diretamente esse princípio, especialmente ao não prever recurso ou
mediação administrativa.
A autonomia é inegociável. A proposta atual incorre em capacitismo institucional, ao tratar
pessoas com deficiência severa como presumidamente incapazes de compreender riscos ou
decidir sobre sua própria jornada.
Ao permitir que a companhia aérea avalie, sem critérios transparentes, a capacidade cognitiva
ou sensorial do passageiro, a norma legitima práticas discriminatórias — como já amplamente
relatado por usuários no próprio processo de consulta pública (como as manifestações sobre
ostomizados e revista constrangedora).
Além disso, ao ignorar a figura do “acompanhante voluntário” previamente indicado pelo
passageiro, a ANAC abre margem para cancelamentos e reembolsos traumáticos, expondo o
usuário à exclusão de última hora.
Em vez de “proteção”, impõe-se tutela indevida e humilhante.
Conclusão:
Solicitamos à ANAC que reformule o texto da resolução para garantir que nenhum passageiro
com deficiência tenha sua liberdade de ir e vir condicionada à discricionariedade de um
agente privado, que a presunção de capacidade seja respeitada, e que as avaliações se deem
com base em parâmetros objetivos, com garantias de contraditório, assistência jurídica e
participação das organizações da sociedade civil.
A acessibilidade plena não pode ser uma concessão — é um direito. A autonomia não é um
favor — é um princípio constitucional.
- * Por Júlio Facó é professor e pessoa com deficiência