OPINIÃO
- * Por Geraldo Nogueira
O humor sempre ocupou um espaço ambíguo na cultura, pois ao mesmo tempo em que é ferramenta de crítica social e libertação, também pode servir como canal para a propagação de preconceitos e discursos de ódio. Em tempos de redes sociais, onde cada piada repercute instantaneamente, o debate sobre os limites do humor se intensifica. Recentes episódios envolvendo humoristas e influenciadores reabriram a discussão. Até onde vai a liberdade de expressão e onde começa a censura?
A liberdade de expressão no marco constitucional brasileiro, amparada nos incisos IV, IX e XIV do artigo 5º da Constituição Federal, a liberdade de expressão é um dos sustentáculos da democracia. Trata-se de um direito com eficácia imediata e plena, que protege a manifestação do pensamento, inclusive por meio de atividades artísticas como o humor. No entanto, por não ser um direito absoluto, ela pode encontrar limites quando colide com outros princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o combate à discriminação e a proteção à honra.
O humor tem longa tradição como forma de crítica social, que vai do teatro à televisão, dos memes à comédia de stand-up. Porém, o uso reiterado de piadas baseadas em estereótipos capacitistas, racistas, LGBTQIA+fóbicos ou misóginos levanta uma questão central: quando o humor deixa de ser uma provocação legítima e passa a ser um discurso de ódio? A linha é tênue, e a subjetividade do riso torna o julgamento ainda mais complexo.
Críticas recentes à chamada “cultura do cancelamento” são frequentemente acompanhadas de alegações de censura. Contudo, é necessário diferenciar censura prévia — vedada pela Constituição — da responsabilização posterior por manifestações que violem direitos de terceiros. A responsabilização, seja cível ou penal, pode ser legítima diante de conteúdos que extrapolem os limites da liberdade e promovam violência simbólica ou incitação ao ódio. Por isso, hoje, os embates sobre o que pode ou não ser dito acontecem publicamente nas redes sociais, com alcance exponencial. O humorista não fala mais apenas para uma plateia num teatro. Ele fala para o país inteiro, e eventualmente para o mundo. O ambiente digital, ao mesmo tempo que democratiza o acesso à fala, também amplifica seus efeitos. A responsabilização se tornou mais imediata, e o julgamento social ocorre antes mesmo do jurídico.
Como foi dito por Buda ao ser instado por um de seus pupilos – “o melhor caminho é o caminho do meio”. Assim, o desafio está em encontrar um ponto de equilíbrio. A jurisprudência e a doutrina já apontam para a necessidade de ponderação entre os direitos em conflito. A proteção à liberdade de expressão não deve ser instrumentalizada como escudo para a intolerância, tampouco se deve aceitar uma regressão autoritária disfarçada de defesa da moral pública. O Judiciário tem papel fundamental ao aplicar critérios objetivos para distinguir humor crítico de incitação ao preconceito.
Por fim, observamos que o debate sobre piadas de mau gosto, censura e liberdade de expressão é mais do que uma disputa entre o politicamente correto e a liberdade artística. É uma questão que revela as tensões de uma sociedade em transformação, onde velhas práticas humorísticas são confrontadas por novos paradigmas éticos e jurídicos. O caminho não é pela censura, mas pela responsabilidade e pela construção de um humor que, ao invés de excluir, questione – e, quem sabe, ajude a transformar.
- * Geraldo Nogueira é Diretor da Pessoa com Deficiência da OAB.RJ