Com diagnósticos desafiadores e tratamentos de alto custo, pacientes com doenças raras enfrentam um sistema ainda pouco preparado para acolher suas jornadas no Brasil
Receber o diagnóstico de uma doença rara foi um baque para Thais Cândido. Ela não aceitava que, entre milhões de pessoas, justo ela tivesse a Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN), uma doença que afeta apenas 1,3 pessoas a cada milhão.1 “Eu precisei entender e aceitar aquele diagnóstico, porque, se eu não aceitasse, teria duas batalhas pela frente: a da doença e a da negação”, diz Thais.
A HPN é uma doença rara, causada por uma mutação genética que gera insuficiência na atuação da medula óssea, o que pode levar à sua destruição prematura dentro dos vasos sanguíneos por mecanismos regulares de defesa do próprio corpo, o sistema complemento. A doença pode causar danos a órgãos prioritários, como rins e pulmões, e a formação excessiva de coágulos que podem vir a bloquear o fluxo sanguíneo.1
Natural de Olinda, Thais tem 31 anos e recebeu o seu diagnóstico há dez. Antes de descobrir o que tinha, ela costumava sentir muito cansaço, fadiga e chegava até a ter desmaios, mas achava que esses sintomas eram efeitos de uma rotina cansativa. Em um dos episódios mais críticos, sua hemoglobina caiu a 1,5 g/dL (o normal para mulheres varia entre 12,0 e 15,5 g/dL). “Eu estava praticamente morta. Tenho esse exame guardado até hoje, pois ele é uma lembrança de que eu cheguei até aqui e existe um propósito para a minha vida”, conta.
Foram anos até o diagnóstico correto. Nesse caminho, Thais passou por diversos médicos e hospitais que não conseguiam identificar a causa da sua hemoglobina baixa. Quando a resposta ainda parecia distante, Thais foi atendida em um hospital da rede pública de saúde da sua cidade, onde foi encaminhada à Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (HEMOPE). Lá ela realizou diversos exames, entre eles, a imunofenotipagem por citometria de fluxo, que analisa o sangue para identificar as células doentes. Após uma longa e difícil busca por respostas, ela finalmente recebeu a notícia que transformaria a sua vida.
Mas Thais não caminhou sozinha. O apoio da família, de amigos e da associação de pacientes foi crucial. “Ninguém na minha família tinha sequer ouvido falar na doença. Mas eles estiveram comigo o tempo todo. Eu não teria conseguido sem isso”, afirma. Segundo Ana Paula Azambuja, hematologista responsável pelo ambulatório de HPN e anemia aplástica do HC de Curitiba/PR, a HPN não é uma doença hereditária, ou seja, não passa de pais para filhos. Ela é causada por uma mutação adquirida ao longo da vida em uma célula da medula óssea, e pessoas com doenças da medula óssea, como anemia aplástica, têm maior risco de desenvolvê-la.
A HPN pode resultar em complicações graves como trombose, anemia severa, fadiga, hemoglobinúria, envolvimento renal, dor abdominal, disfagia (dificuldade de deglutição) e dispneia (falta de ar).2 De acordo com Ana Paula, os principais tratamentos para a doença são medicamentos que bloqueiam uma parte do sistema complemento, impedindo a destruição das células sanguíneas. Eles ajudam a controlar os sintomas, reduzem o risco de trombose e melhoram a qualidade de vida do paciente.
Após o diagnóstico, Thais iniciou alguns tratamentos, mas não teve resultados expressivos — até começar a usar a pegcetacoplana. Em um mês, os benefícios do tratamento começaram a aparecer. “Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, eu sou muito grata a Deus e a todos que correram atrás dessa terapia junto comigo”, afirma. Além da melhora clínica, o impacto foi emocional. A icterícia, característica da doença, deixava sua pele e os olhos amarelados, afetando diretamente sua autoestima. “A medicação não trouxe só saúde. Trouxe de volta a vontade de viver”, ela compartilha.
A jornada de Thais é parecida com a de muitos pacientes com doenças raras no Brasil. O país ainda enfrenta entraves importantes na incorporação e disponibilização de terapias inovadoras no sistema público e privado, além de desafios para o diagnóstico precoce das doenças e para a disseminação de conhecimento técnico entre profissionais da ponta. A hematologista Ana Paula explica que esses tratamentos representam um grande avanço da medicina, já que, até pouco tempo atrás, a maioria das doenças raras como a HPN, não tinha tratamento específico. “As terapias inovadoras aumentam a sobrevida, controlam sintomas graves e devolvem autonomia aos pacientes. A falta de acesso a elas causa atrasos e incertezas no cuidado médico dessas doenças”, complementa.
Para Ângelo Maiolino, médico hematologista e presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), que é um defensor ativo do acesso a essas terapias e reforça que o inconformismo aliado à inovação e à busca por excelência clínica é um motor poderoso para transformar realidades. “O acesso às novas terapias fez a diferença na vida de milhares de pacientes. Nosso papel é continuar inconformados, buscar inovação e pressionar por sua incorporação”, afirmou o especialista durante a 2ª edição do SPHERE – Summit Pint Pharma in Hematology and Rare Diseases, realizada em abril de 2025.
Inconformismo que vai além da busca por tratamentos inovadores mas que precisa fazer parte de toda a cadeia envolvida na jornada de um paciente raro. Pacientes precisam se inconformar com a falta de acesso a tratamentos, médicos e outros profissionais da saúde precisam sair da zona de conforto de “apenas clinicar ou receitar um medicamento” e assumir um protagonismo pela causa, e associações precisam buscar caminhos para transformar o cenário de raras no Brasil. Não se conformar é a chave para mudanças.
Para Thais, o diagnóstico já não é mais uma sentença. Ela ressignificou muitos aspectos na sua vida com o descobrimento da doença e transformou a dificuldade em força. Porém, ela sabe que existem muitas pessoas que continuam esperando, procurando respostas, tentando sobreviver ao desconhecido, e deseja que todas as pessoas possam ter a rede de apoio que ela teve, com família, médicos e associações empenhados em facilitar a caminhada desses pacientes.
Referências
1 BRASIL. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Relatório de recomendação nº 954 – Pegcetacoplana para o tratamento de pacientes adultos com hemoglobinúria paroxística noturna previamente tratados com inibidores do complemento. Brasília: CONITEC, dez. 2024. Disponível em:Link Acesso em: 02 jul. 2025.
2 Parker C., et al. (2016). “Diagnosis and management of paroxysmal nocturnal hemoglobinuria.” Blood, 127(3): 420-427. doi:10.1182/blood-2015-11-620666.