Para especialista “é possível conciliar o controle administrativo com o respeito aos direitos dos beneficiários, desde que se adotem estratégias mais inteligentes e humanizadas”
A Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados realiza amanhã (2/9), uma audiência pública para discutir o cumprimento da Lei 15.157/25, que estabelece a dispensa de perícias médicas periódicas para pessoas com deficiência e beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do Regime Geral de Previdência Social, desde que apresentem condições de saúde permanentes, irreversíveis ou irrecuperáveis.
A iniciativa surge em resposta às recentes denúncias de convocações em massa para perícias médicas, mesmo em casos que se enquadram nas exceções previstas pela nova legislação. A prática, segundo especialistas, pode representar uma violação de direitos fundamentais e gerar sofrimento desnecessário aos beneficiários.
A advogada Giane Maria Bueno, especialista em Direito Previdenciário e integrante do escritório Michelin Sociedade de Advogados, destaca que a nova legislação representa um avanço na proteção dos direitos das pessoas com deficiência. “A Lei 15.157/25 dispensa a reavaliação médico-pericial periódica quando a incapacidade ou impedimento é considerado permanente, irreversível ou irrecuperável. Isso inclui doenças como AIDS, Alzheimer, Parkinson e esclerose lateral amiotrófica”, explica.
Segundo a advogada, há uma presunção legal de manutenção da condição, e a administração pública não pode exigir perícias rotineiras, salvo em casos de suspeita fundamentada de fraude ou erro, que devem estar embasados em elementos concretos, e não em meras presunções. A norma também exige a participação de médico infectologista em perícias relacionadas à AIDS, reforçando a segurança jurídica e técnica do processo.
Ela alerta que as chamadas operações de “pente-fino”, quando realizadas de forma indiscriminada, colidem com os direitos assegurados pela nova lei. “Convocar beneficiários que já se enquadram nos critérios legais, sem justa causa, compromete a segurança jurídica, afronta a dignidade da pessoa humana e viola os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”, afirma. Tais convocações podem ser judicialmente questionadas por violação de direito líquido e certo.
Para a especialista, é possível conciliar o controle administrativo com o respeito aos direitos dos beneficiários, desde que se adotem estratégias mais inteligentes e humanizadas. Ela sugere que, em vez de convocações indiscriminadas, o poder público utilize ferramentas de inteligência de dados e análise preditiva, cruzando informações de diferentes bases para identificar indícios concretos de irregularidades. Além disso, recomenda que a avaliação inicial seja feita com protocolos periciais mais robustos, capazes de documentar com precisão a irreversibilidade da condição de saúde. “Laudos médicos recentes e detalhados também devem ser reconhecidos como válidos para a manutenção do benefício, evitando a necessidade de reexames desnecessários”.
Bueno destaca ainda a importância da capacitação técnica de servidores e peritos para garantir a correta aplicação da nova legislação, bem como a criação de canais de comunicação acessíveis e eficazes para orientar os beneficiários sobre seus direitos.
Visão Médica: modelo biopsicossocial e ética pericial
A médica Caroline Daitx, especialista em medicina legal e perícia médica, reforça que a perícia médica tradicional, centrada apenas em achados clínicos, não é suficiente para avaliar integralmente a condição das pessoas com deficiência. Ela defende a adoção do modelo biopsicossocial, baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF/OMS), que considera:
- Aspectos clínicos: diagnóstico, exames, evolução da doença;
- Aspectos funcionais: autonomia, mobilidade, comunicação;
- Aspectos sociais: barreiras urbanísticas, apoio familiar, discriminação.
Para evitar convocações periódicas desnecessárias, a perita ressalta que os laudos periciais sejam elaborados com rigor técnico e clareza, de modo a evidenciar a irreversibilidade da condição de saúde do beneficiário. Segundo ela, é fundamental que esses documentos estejam fundamentados em evidências clínicas e científicas consistentes, permitindo que a administração reconheça a impossibilidade de recuperação.
Daitx também recomenda a aplicação da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF/OMS), que permite descrever com precisão as limitações permanentes enfrentadas pelo indivíduo. É importante diferenciar com base técnica, os casos de doenças estáveis e irreversíveis — que dispensam revisões periódicas — daqueles em que há instabilidade ou progressão, e que podem justificar reavaliações futuras. “Essa abordagem contribui para a eficiência administrativa e evita que os beneficiários sejam submetidos a constrangimentos e desgastes emocionais desnecessários”.
A médica enfatiza que o perito deve atuar com base nos princípios de dignidade da pessoa humana e não discriminação, conforme previsto na Constituição e no Código de Ética Médica. “É essencial investir na formação continuada dos peritos e promover a integração entre saúde, previdência e assistência social para garantir decisões justas e multidimensionais”, conclui.