Esterilização de Pessoas com Deficiência Intelectual: Riscos Jurídicos e Sociais do PL 5.679/2023 à Luz da CDPD e da LBI

Esterilização de Pessoas com Deficiência Intelectual: Riscos Jurídicos e Sociais do PL 5.679/2023 à Luz da CDPD e da LBI - OPINIÃO - Por Igor Lima

OPINIÃO

  • * Por  Igor Lima

O Brasil está, mais uma vez, prestes a decidir se o Estado pode intervir no corpo de pessoas com deficiência intelectual. O PL 5.679/2023 autoriza a esterilização mediante decisão judicial — e isso nos coloca diante de um retrocesso que não é jurídico apenas: é civilizatório.
A história já mostrou que, quando o Estado reivindica o poder de decidir a fertilidade de determinados grupos, o resultado nunca é proteção — é controle.

A recente aprovação do Projeto de Lei n.º 5.679/2023 na Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados reacendeu um debate sensível, complexo e historicamente marcado por violações: a esterilização de pessoas com deficiência intelectual ou mental. Embora apresentado como proposta de proteção mediante controle judicial, o texto do PL suscita graves preocupações à luz da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) — com status constitucional — e da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que asseguram plena capacidade civil, autonomia reprodutiva e respeito à integridade física.

Como pessoa com deficiência, e como pesquisador da área, não consigo analisar esse tema apenas pela lente jurídica fria. A discussão não é abstrata para nós. Ela fala de corpos reais, de histórias reais e de uma longa trajetória de controle institucional sobre as nossas escolhas. Por isso, quando um projeto como esse surge, o que vejo não é proteção: é o risco de repetirmos práticas que, embora disfarçadas de cuidado, produzem silenciamento e supressão de autonomia.

Pense, por exemplo, em uma jovem com deficiência intelectual que expressa o desejo de ser mãe, mas cuja família — por medo, falta de informação ou preconceito — entende que ela “não deve” engravidar. Sob a lógica do PL, esse conflito doméstico poderia facilmente ser levado ao Judiciário e resultar em uma autorização para esterilização irreversível. A vontade dela desapareceria no processo. E esse é exatamente o perigo: decisões íntimas podem deixar de ser da pessoa e se tornar decisões institucionais.

O PL prevê que a esterilização cirúrgica — laqueadura ou vasectomia — de pessoas que “não possam exprimir sua vontade” somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, com oitiva do Ministério Público e prioridade de realização. À primeira vista, trata-se de reforçar garantias procedimentais. Contudo, uma análise mais profunda revela que a proposta cria um regime jurídico diferenciado e potencialmente discriminatório para a pessoa com deficiência intelectual, submetendo direitos existenciais à tutela institucional e ampliando risco de práticas violadoras.

1. Marco jurídico: capacidade civil e autonomia reprodutiva

A LBI é clara ao afirmar, em seu artigo 6º, que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer direitos sexuais e reprodutivos, decidir sobre sua fertilidade e acessar métodos contraceptivos. A CDPD, por sua vez, impõe aos Estados a obrigação de assegurar que pessoas com deficiência possam decidir livre e responsavelmente o número de filhos, ter acesso a informações e métodos contraceptivos e não sejam submetidas a tratamentos médicos sem consentimento livre e informado.

A legislação brasileira de planejamento familiar (Lei 9.263/1996) também estabelece que a esterilização depende de consentimento expresso, proibindo qualquer procedimento compulsório. Mesmo nos casos de curatela, a substituição da vontade não pode alcançar direitos existenciais, como sexualidade, reprodução e integridade física.

Aqui, vale mencionar a doutrina de Maria Berenice Dias, que lembra que direitos existenciais “integram o núcleo da personalidade e não admitem substituição de vontade”, reforçando que decisões sobre fertilidade pertencem exclusivamente à própria pessoa.

Como autor e como sujeito desse debate, me preocupa profundamente ver propostas legislativas que ignoram essas bases jurídicas consolidadas. Não se trata apenas de interpretação técnica, mas de compreender que decisões sobre o corpo pertencem exclusivamente à própria pessoa — e qualquer mecanismo que permita o contrário abre espaço para abusos.

Nesse contexto, a previsão de autorização judicial — ainda que acompanhada pelo Ministério Público — não elimina o risco de decisões motivadas por percepções capacitistas sobre suposta incapacidade de decisão, contrariando o modelo de apoio à tomada de decisão previsto na CDPD.

2. Críticas institucionais: a Nota Pública da AMPID

A gravidade dos riscos foi destacada na Nota Pública da AMPID — Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos, elaborada conjuntamente com o Coletivo Brasileiro pelo Artigo 12 da CDPD e a Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In).

O documento afirma que o PL representa “esterilização não voluntária de pessoas com deficiência mental ou intelectual”, configurando uma ameaça concreta aos direitos humanos e podendo aprofundar práticas já existentes de violência institucional. A nota ressalta que o texto legislativo contraria frontalmente a LBI, a CDPD e princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana, igualdade e integridade física, além de propor regime discriminatório incompatível com o modelo social da deficiência.

Como pessoa com deficiência e alguém que acompanha de perto os retrocessos nas políticas públicas de inclusão, reconheço nas palavras da AMPID algo que vai além da crítica institucional: trata-se de um alerta ético. A história nos mostra que decisões sobre esterilização nem sempre surgem para proteger — muitas vezes surgem para controlar. E quando esse controle recai sobre corpos marcados por vulnerabilidade, o risco de violência institucional aumenta de forma exponencial.

3. Riscos éticos, jurídicos e sociais da proposta

A análise do PL 5.679/2023 evidencia riscos significativos, entre eles:

a) Esterilização não voluntária por via judicial

Ao condicionar o procedimento à autorização judicial, o PL não elimina a possibilidade de decisões baseadas em interpretações subjetivas sobre “melhor interesse”, frequentemente permeadas por estereótipos sobre incapacidade. Isso contraria o princípio da autodeterminação e pode legitimar intervenção corporal sem consentimento pleno.

b) Reforço de práticas seletivas

Ao prever prioridade para a realização da esterilização em pessoas com deficiência intelectual, a proposta pode reproduzir um imaginário higienista, que historicamente vinculou corpos com deficiência à necessidade de controle reprodutivo.

c) Ausência de perspectiva de apoio

O PL ignora o paradigma da CDPD, que prioriza apoio à tomada de decisão, e não substituição. Pessoas com deficiência intelectual podem necessitar de ambientes acessíveis, informação em formatos compreensíveis e acompanhamento interdisciplinar, e não medidas invasivas irreversíveis.

d) Fragilização de direitos existenciais

A esterilização diz respeito a integridade física, autonomia sexual e planejamento familiar — temas que configuram núcleo essencial da dignidade. Permitir decisões de terceiros sobre essas dimensões, ainda que com aparato judicial, representa violação aos direitos humanos.

Aqui, é oportuno lembrar o alerta de Ingo Wolfgang Sarlet, para quem a integridade física é “elemento inderrogável da dignidade humana”, e qualquer intervenção forçada, ainda que juridicamente autorizada, “constitui violação ao núcleo essencial dos direitos fundamentais”.

Como autor, entendo que esse ponto é o mais sensível de todos. Direitos existenciais são o coração da dignidade humana, e permitir que terceiros decidam sobre eles é romper o próprio conceito de pessoa como sujeito de direitos.

4. O dever do Estado: políticas públicas, e não tutela corporal

Em vez de permissivos legais que flexibilizam esterilizações, o Estado deve implementar políticas públicas que assegurem:

– educação sexual acessível, com materiais apropriados e linguagem clara;
– apoio à tomada de decisão, com profissionais capacitados em comunicação inclusiva;
– atendimento em saúde reprodutiva acessível, com protocolos especializados;
– formação contínua de equipes multiprofissionais, reduzindo práticas discriminatórias;
– ambientes seguros para denúncia e proteção contra violência sexual.

Também merece destaque a doutrina de Izabel Maior, uma das principais referências do modelo social da deficiência no Brasil, ao afirmar que a vulnerabilidade “não está na pessoa, mas na ausência de acessibilidade, apoio e políticas adequadas”.

Essa é a discussão que deveria estar na pauta legislativa. A vulnerabilidade da pessoa com deficiência intelectual não decorre de sua condição, mas das barreiras que encontra para exercer sua autonomia. Como pesquisador da área, posso afirmar: não é o corpo que vulnerabiliza a pessoa com deficiência — é o ambiente social que insiste em dificultar seu exercício de direitos.

Assim, medidas como a proposta no PL tendem a ampliar desigualdades, em vez de mitigá-las.

Conclusão

A esterilização de pessoas com deficiência intelectual é tema sensível e exige abordagem baseada em direitos humanos. O PL 5.679/2023, ao propor autorização judicial e prioridade de procedimento, representa risco concreto de violação da autonomia reprodutiva, integridade física e dignidade da pessoa com deficiência, em desacordo com a Constituição, com a LBI e com a CDPD.

A Nota Pública da AMPID revela que não se trata de mero debate técnico, mas de um retrocesso com potencial de aprofundar práticas discriminatórias. Como pessoa com deficiência, jurista e pesquisador, afirmo: não podemos aceitar que o Estado decida sobre a fertilidade de pessoas historicamente silenciadas.

Se o Congresso deseja realmente proteger pessoas com deficiência, deve fortalecer políticas públicas de apoio, e não práticas que lembram um passado que lutamos tanto para superar.

Nenhum Estado tem o direito de decidir pela fertilidade de outra pessoa.

  • Igor Lima é advogado (OAB/RJ), especialista em Direitos Humanos e sustentabilidade, e pessoa com deficiência. Coordenador da coletânea jurídica “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, citada no STJ, TST, STF e presente em instituições como Harvard e Universidade de Coimbra. Autor de artigos publicados em espaços como ABDConst, Future Law e revistas jurídicas nacionais, atua como palestrante em instituições como UERJ, UFRJ, UFF, OAB/RJ e MPRJ. Dedica-se à pesquisa e defesa dos direitos das pessoas com deficiência, com experiência em inclusão, políticas públicas e ESG.   

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