OPINIÃO
- * Por Igor Lima
Para muitas pessoas usuárias de cadeira de rodas, solicitar um carro por aplicativo não é um gesto simples nem automático. É um momento de ansiedade, expectativa e, frequentemente, frustração. A promessa de mobilidade, autonomia e tecnologia esbarra, na prática, em barreiras atitudinais, discriminação e exclusão cotidiana.
Relatos se repetem diariamente: motoristas que cancelam a corrida ao perceber que o passageiro utiliza cadeira de rodas; condutores que passam direto ao ver a pessoa aguardando; justificativas como “vai sujar o carro”, “não cabe no porta-malas”, “meu carro não é adequado” ou “estou com pressa”. Em situações ainda mais graves, há motoristas que simplesmente abandonam a pessoa cadeirante na rua, sob chuva, frio ou insegurança.
Essas práticas não são exceções. São recorrentes. E têm nome jurídico: discriminação.
Constrangimento, medo e a negação do direito de ir e vir
Cada corrida cancelada não representa apenas um deslocamento frustrado. Ela gera constrangimento público, humilhação e insegurança. É a sensação de não ser bem-vindo. É o medo de sair de casa sem saber se conseguirá voltar. É a perda concreta do direito de ir e vir.
Enquanto a maioria das pessoas solicita um carro por aplicativo com a certeza de que será atendida, pessoas com deficiência vivem a dúvida constante: “Será que alguém vai me aceitar?”
Essa diferença de experiência revela que a mobilidade, no Brasil, ainda não é exercida em igualdade de condições.
A lei brasileira é clara: recusar transporte é ilegal
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) é expressa ao proibir qualquer forma de discriminação no acesso a serviços de transporte, sejam eles públicos ou privados. Negar, dificultar ou restringir o atendimento à pessoa com deficiência configura violação de direitos fundamentais, sujeita a responsabilização administrativa, civil e penal.
A alegação de que a cadeira de rodas “sujaria o veículo” ou de que “não há espaço” não encontra respaldo jurídico. Trata-se de argumento capacitista, que transforma a deficiência em incômodo e transfere à pessoa com deficiência o ônus da exclusão.
Serviços ofertados ao público em geral não autorizam seleção de usuários com base em suas condições físicas.
O abismo entre o discurso das plataformas e a realidade vivida
Reportagem do Terra revela o contraste entre as políticas oficiais das plataformas e a experiência cotidiana de usuários com deficiência. Embora Uber e 99 afirmem possuir guias de acessibilidade e orientações para motoristas, usuários relatam recusas frequentes, falta de auxílio, constrangimentos e abandono.
Há registros de motoristas que se recusam a transportar cadeiras de rodas por causa do porta-malas, que impedem o passageiro de ocupar o banco da frente ou que alegam que o banco de couro poderia ser danificado. Em muitos casos, o motorista sequer sai do carro para avaliar a situação.
Relatos de discriminação e dificuldades concretas
Passageiros relatam dificuldades para transportar cadeiras de rodas ou falta de ajuda dos motoristas ao embarcar e desembarcar.
Reclamações documentadas incluem motoristas que impedem apoio para ajudar a entrar no carro ou que se negam a transportar a cadeira de rodas por alegarem falta de espaço.
Há relatos de motoristas que de fato recusam corridas quando percebem que o passageiro é pessoa com deficiência ou quando estão acompanhados de cão-guia — reiterando o que já vem sendo denunciado por usuários.
A existência de diretrizes internas, portanto, não tem sido suficiente para impedir violações sistemáticas.
Quando a Justiça age: o exemplo internacional
A mesma reportagem destaca um dado revelador: a Uber foi multada em US$ 2 milhões (aproximadamente R$ 10,8 milhões) pela Justiça dos Estados Unidos por cobrar taxas extras de pessoas com deficiência, especialmente taxas de tempo de espera quando o embarque demandava mais tempo em razão do uso de cadeira de rodas ou outros dispositivos de mobilidade.
A penalidade foi aplicada justamente por reconhecer que tratar a deficiência como custo adicional configura discriminação.
O caso demonstra que, quando há fiscalização, responsabilização e atuação firme do Estado, práticas abusivas são coibidas. Também desmonta o argumento de que essas situações seriam inevitáveis ou meramente operacionais.
Plataformas não são neutras: lucram e devem responder
Empresas de transporte por aplicativo não atuam como intermediárias passivas. Elas:
- organizam o serviço;
- definem regras;
- lucram com cada corrida;
- controlam avaliações e punições;
- decidem quem permanece ou não na plataforma.
Por isso, integram a cadeia de prestação do serviço e devem responder por falhas estruturais que permitem práticas discriminatórias. Treinamento obrigatório, mecanismos eficazes de denúncia, punições reais e incentivo à adaptação veicular não são favores — são deveres decorrentes da função social da atividade econômica.
A relação de consumo e a responsabilização das plataformas
Além da violação à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, a recusa injustificada de transporte por aplicativos também deve ser analisada sob a ótica do Direito do Consumidor. O serviço de transporte por aplicativo configura, de forma inequívoca, relação de consumo, estando o usuário protegido pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990).
Nesse contexto, a empresa responsável pela plataforma pode ser judicialmente responsabilizada por falhas na prestação do serviço, especialmente quando permite, tolera ou não coíbe práticas discriminatórias por parte de seus motoristas parceiros. O consumidor com deficiência tem direito a um serviço adequado, seguro e não discriminatório — e a violação desses deveres pode gerar consequências jurídicas.
Diante de situações de desrespeito, constrangimento ou recusa no acesso ao transporte por aplicativo, é fundamental que a pessoa com deficiência registre o ocorrido de todas as formas possíveis, reunindo provas que demonstrem a conduta discriminatória. Entre as medidas recomendadas estão:
- realizar prints da tela do aplicativo com os dados da viagem, do motorista e dos cancelamentos;
- guardar recibos ou comprovantes, se houver;
- anotar a placa do veículo;
- registrar o contato de eventuais testemunhas no local;
- tirar fotos ou gravar vídeos da situação, sempre que possível;
- registrar boletim de ocorrência junto à autoridade policial.
Com as provas em mãos, torna-se viável adotar as providências cabíveis em face da empresa responsável pela plataforma, seja na esfera administrativa, civil ou judicial.
Situações como essas não configuram mero aborrecimento cotidiano. O constrangimento imposto à pessoa com deficiência, ao ter seu direito de ir e vir negado de forma discriminatória, pode caracterizar ofensa à dignidade humana do consumidor, ensejando indenização por danos morais, sem prejuízo de eventuais repercussões na esfera penal, a depender do caso, por crime de discriminação contra a pessoa com deficiência.
O dever do Poder Público: regular, fiscalizar e punir
Municípios e o Distrito Federal possuem competência para regulamentar e fiscalizar os serviços de transporte por aplicativo. Isso inclui exigir critérios mínimos de acessibilidade, treinamento adequado e sanções efetivas em casos de discriminação.
Projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional reforçam a necessidade de inserir a acessibilidade como diretriz obrigatória na regulamentação desses serviços, reconhecendo que o problema é estrutural e demanda resposta normativa.
A omissão estatal contribui diretamente para a perpetuação da exclusão.
Projeto de Lei 2560/24 — Acessibilidade em aplicativos de transporte
A Câmara dos Deputados aprovou, em comissão, um projeto de lei que inclui a acessibilidade como diretriz obrigatória na prestação de serviços de transporte individual por aplicativo, como Uber, 99 e outros.
Pelo texto aprovado:
- a acessibilidade deve ser considerada na regulamentação e fiscalização desses serviços pelos municípios e pelo Distrito Federal;
- a proposta demanda que os serviços sejam capazes de transportar todos os passageiros, independentemente de condição física ou intelectual, com segurança, conforto, higiene e qualidade;
- prevê, entre outras medidas, ferramentas tecnológicas acessíveis, treinamento periódico para motoristas, adequação de veículos e livre acesso a animais de serviço;
- também obriga municípios e o Distrito Federal a criar incentivos à acessibilidade em veículos de transporte individual por aplicativo e táxis.
O projeto ainda está em tramitação e precisa ser aprovado pelas comissões competentes e pelo Plenário para virar lei.
Inclusão não é gentileza, é direito
Aceitar uma pessoa usuária de cadeira de rodas em um carro por aplicativo não é um ato de bondade. É cumprimento da lei. É respeito à dignidade humana. É reconhecimento de cidadania.
Enquanto motoristas continuarem cancelando corridas, passando direto ou abandonando passageiros, e enquanto plataformas e Poder Público tratarem essas situações como episódios isolados, a mobilidade continuará sendo privilégio — não direito.
Mobilidade é liberdade.
Liberdade é dignidade.
E dignidade não pode depender da boa vontade de quem está ao volante.

- * Igor Lima é advogado (OAB/RJ), especialista em Direitos Humanos e sustentabilidade, e pessoa com deficiência. Coordenador da coletânea jurídica “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, citada no STJ, TST, STF e presente em instituições como Harvard e Universidade de Coimbra. Autor de artigos publicados em espaços como ABDConst, Future Law e revistas jurídicas nacionais, atua como palestrante em instituições como UERJ, UFRJ, UFF, OAB/RJ e MPRJ. Dedica-se à pesquisa e defesa dos direitos das pessoas com deficiência, com experiência em inclusão, políticas públicas e ESG.
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