** Por Daniela Machado Mendes
O direito à educação domiciliar — ou homeschooling — ganhou destaque na agenda nacional nos últimos anos. O modelo prevê que crianças e adolescentes sejam educados em casa por seus pais ou responsáveis ao invés de frequentarem a escola.
No contexto da pandemia, enquanto as escolas foram desafiadas a buscar alternativas para a continuidade das atividades, acompanhamos a publicação do Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, com sua perspectiva segregadora, e, em paralelo, a retomada de projetos de lei em favor do ensino domiciliar no País.
Fomos surpreendidos no final de maio com a aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei nº 3.179/2012, de autoria do deputado Lincoln Portela (PL-MG) e relatoria da deputada Luisa Canziani (PTB-PR).
Especialistas de diversas áreas do conhecimento e organizações da sociedade civil como o Instituto Jô Clemente (IJC) têm externado preocupação em relação à aprovação desse Projeto de Lei e como a educação domiciliar pode ser prejudicial a crianças e adolescentes com deficiência.
A escola é um espaço de aprendizado e de desenvolvimento para crianças e adolescentes, não apenas em relação aos conteúdos ministrados, mas também por possibilitar, por meio das trocas de experiências e do convívio com outras pessoas, o contato com as diferenças, o exercício da tolerância e o desenvolvimento de outras habilidades tão necessárias ao exercício de cidadania.
Durante a pandemia acompanhamos de perto o movimento de adaptação das escolas para assegurar a continuidade dos estudos a distância e os desafios enfrentados pelas famílias para evitar prejuízos no processo educativo de seus filhos. Também desenvolvemos materiais e disponibilizamos ferramentas para apoiar as famílias nesse momento delicado.
Pela nossa experiência, podemos dizer que família e escola têm papéis e responsabilidades diferentes e complementares. A escola é o espaço onde a criança e o adolescente acessam conteúdos de base curricular, atrelados ao processo de educação formal. Isso não impede que junto às famílias acessem outros materiais e vivências que contribuam para o seu desenvolvimento em diversos campos da vida.
O diálogo entre a escola e a família é fundamental para que o processo educativo se desenvolva da melhor forma. A construção de projetos pedagógicos e de alternativas que acolham as especificidades de cada estudante pode ser realizada a muitas mãos.
No entanto, na perspectiva da educação inclusiva, todas as crianças e adolescentes têm direito a estarem na escola e esse espaço de troca e experiência deve estar aberto a todos os alunos para que possam conviver e aprender juntos, sem nenhum tipo de discriminação.
A educação inclusiva oferece os caminhos e ferramentas para que estudantes com deficiência intelectual frequentem escolas regulares, sem diferenciação ou segregação em relação aos demais alunos.
Por isso, a adoção do ensino domiciliar pode ser mais uma barreira à garantia da educação inclusiva e uma forma de fazer com que estudantes com deficiência sejam mantidos fora das escolas regulares.
Além disso, a escola funciona como um observatório, uma ferramenta para o monitoramento do bem-estar das crianças e adolescentes, e por meio da qual também se identificam situações de violência e de violações de direitos. Quanto maior o afastamento de crianças e adolescentes do ambiente escolar, maiores os desafios para o monitoramento e consequente adoção de medidas voltadas à proteção desse público.
Desde 2011, alinhado à Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), o Instituto Jô Clemente (IJC) oferece o Atendimento Educacional Especializado (AEE), no contraturno escolar, como apoio ao desenvolvimento de crianças e adolescentes com deficiência intelectual e com Transtorno do Espectro Autista (TEA), entre 4 e 17 anos, matriculados em escolas regulares de ensino, favorecendo o rompimento de barreiras nos ambientes sociais, educacionais e familiares.
Sabemos que a participação de crianças e adolescentes no ambiente escolar é essencial para o desenvolvimento. Em 61 anos de trajetória, sempre buscamos aliar pesquisa, ciência e inovação voltados ao nosso propósito de inclusão social. Nesse sentido, realizamos por meio do nosso Centro de Ensino, Pesquisa e Inovação (CEPI), ao longo de três anos, estudo que comprova que os estudantes com deficiência intelectual incluídos nas escolas regulares vivenciaram ganhos de autonomia, no relacionamento interpessoal e na forma de expressão e comunicação.
Acreditamos e lutamos para que crianças e adolescentes com deficiência estejam incluídos nas escolas regulares. Medidas que autorizam que sejam educados exclusivamente no ambiente domiciliar podem contribuir para a manutenção da lógica de segregação e invisibilidade e para a perpetuação da exclusão do ambiente escolar, na contramão do que propõe a educação implementada numa perspectiva inclusiva.
- * OPINIÃO reflete a opinião do autor. A reprodução é autorizada, desde que citada a fonte.
- ** Daniela Machado Mendes é Superintendente Geral do Instituto Jô Clemente (IJC)