- Por Carolina Ignarra
Há tempos venho refletindo sobre o chamado “recrutamento às cegas”. Não somente pelo método, que inspirado no modelo europeu e norte americano, vem influenciando as empresas no Brasil com a tentadora contrapartida de aumentar a diversidade interna das companhias.
O método usa tecnologia para uma seleção de profissionais a partir de um software que faz a seleção apenas com base nas habilidades profissionais da pessoa que está concorrendo à vaga, sem revelar nenhuma de suas características pessoais como gênero, raça, cor de pele, religião, se tem ou não alguma deficiência, idade, endereço etc. Tudo com a intenção de realizar uma seleção mais neutra possível, sem que os julgamentos humanos possam interferir no processo.
Procuramos sempre entender e apoiar todas as iniciativas que fomentem a diversidade e inclusão de todos os marcadores sociais. Apesar da intenção ser a das melhores, é preciso ponderar alguns fatores antes de assumir esse processo na empresa.
O nome do método, “recrutamento ou seleção às cegas”, acaba por reforçar estereótipos, importado dos EUA, um termo que é frequentemente utilizado para definir encontros românticos entre pessoas desconhecidas. Como profissional da área e pessoa com deficiência, confesso que o termo tem me causado um certo incômodo. “Às cegas”, sugere que devemos esconder os marcadores que queremos contratar, traz para o método o significado de ‘informações ocultas’. É um uso negativo de uma deficiência para definir um processo que não é transparente, que esconde e oculta os fatos. Sem juízo de valor ao método, o nome, por si só, é capacitista.
Para chegar a essa conclusão, fiz o indicado, “nada sobre nós, sem nós”. Consultei duas pessoas com deficiência visual, Guilherme Bara e Janaina Bernardino, para entender a opinião delas sobre o termo e ambos entendem como uma expressão capacitista.
Quem trabalha com Diversidade e Inclusão já entendeu que não há regras prontas, muito menos o “certo” e o “errado”. Todos os dias, precisamos estar preparados para novos aprendizados e quais as melhores maneiras de se comunicar com cada pessoa. Estamos sempre em construção e é com informação que a gente pode evitar a exclusão.
Além da melhor definição para o nome do processo, outro questionamento sobre a efetividade do formato deve ser considerado: é justo e respeitoso “ocultar” uma característica se em nossos processos de fortalecimento da cultura de inclusão trabalhamos arduamente para sensibilizar as empresas sobre a importância de incluir a pessoa com deficiência ou a pessoa LGBTQIA+, a pessoa 45+, a pessoa preta ou ainda aquela com suas várias interseccionalidades etc. sempre com as suas características e não apesar delas? Incentivamos que as diferenças sejam valorizadas e não escondidas.
Ocultar informações não contraria o princípio básico de incluir a pessoa com o respeito que ela merece? A pessoa que busca inclusão, na verdade, quer ser incluída com suas características. Sem precisar escondê-las para pertencer. Sem parecer o que não é.
Além de tudo, ainda pode ser considerado um modelo opressor, já que obriga a ocultar características que compõem a personalidade e história pessoal. Para esse método é preciso estar pronto. Realizar a contratação às cegas de uma pessoa com deficiência física como eu, por exemplo, sem que a empresa esteja acessível de fato, sem que os gestores estejam recebendo treinamento para liderarem times com pessoas diversas, sem preparar as equipes para uma inclusão produtiva, é perpetuar o erro da exclusão. Isso apenas “empurra” para frente o viés que não apareceu na seleção que oprimiu características importantes.
O processo poderia ter outro nome, como ‘processo seletivo oculto’, pois o que se espera de fato é uma inclusão cada vez mais ‘escancarada’ e nada oculta. Se a empresa quer atuar verdadeiramente na inclusão, preparando e fortalecendo sua cultura, não será preciso e nem faz sentido esconder os recortes. Caso contrário, evidencia o despreparo para a diversidade.
A seleção deve valorizar as pessoas que concorrem à vaga nas empresas a partir das suas diferenças. O chamado “recrutamento às cegas” pode até gerar o aumento da população diversa nas empresas, porém se realizado onde não há um trabalho sólido de cultura de inclusão não trará resultados sustentáveis.
É sempre importante reforçar que incluir vai além de apenas contratar. Especialmente neste momento, em que as empresas estão mais atentas ao tema para cumprir com suas agendas ESG, é mais do que urgente falar sobre inclusão produtiva. Aquela que faz mais do que contratar e proporciona a toda a sua diversidade as mesmas oportunidades de desenvolvimento profissional. Aquela que quer mostrar que é diversa e não esconder.
Às cegas, a empresa não exclui na entrada, exclui no meio e na saída e com isso perde força de trabalho por não conseguir gerar pertencimento. Portanto, o processo ‘às cegas’ só trará bons resultados se, de um ponto a outro, a empresa estiver com sua cultura de inclusão consolidada e trazendo melhoria contínua. O fato é que quanto mais forte e estruturada a cultura de inclusão menor e mais improvável a necessidade de ocultar as diversidades!
- Carolina Ignarra é CEO e fundadora da Talento Incluir, consultoria que já incluiu mais de 8 mil profissionais com deficiência no mercado de trabalho. É influencer do LinkedIn e está entre as 20 mulheres mais poderosas do Brasil da revista Forbes em 2020.