- Por Joelson Dias e Ana Luísa Junqueira
O rápido desenvolvimento da Tecnologia de Informação e Comunicação (ICT) fez com que surgisse um cenário de relações sociais totalmente inédito. Neste novo contexto, que afeta toda a sociedade, emerge a necessidade de regulação sobre quais papéis e responsabilidades podem ser atribuídas a diferentes contextos e partes no ambiente virtual.
Dentre todos os potenciais derivados da ICT, nota-se principalmente sua capacidade de servir como ferramenta eficaz para promover a educação, paz, segurança e estabilidade, para melhorar a democracia, a coesão social, a boa governança e o Estado de Direito. Noutro giro, reconhecemos a necessidade de enfrentar efetivamente os desafios e as ameaças decorrentes da utilização das ICT para fins de violação de direitos e instabilidade política, econômica e social. A segurança da informação e da rede são fundamentais para evitar o abuso da tecnologia para fins ilícitos ou mesmo criminosos e terroristas. Além disso, a utilização das ICT e a criação de conteúdo devem respeitar a verdade dos fatos e os direitos humanos, inclusive a liberdade de expressão e acesso à informação.
Autores como O’Neil (2020), Raji e Buolamwini (2019) têm discutido a influência e a modulação exercidas pelas plataformas digitais e por seus algoritmos sobre os direitos humanos e a democracia. Revelam os vieses raciais, classistas e sexistas sistêmicos de seus algoritmos e modelos de negócios, que reforçam relações de dominação em contextos educacionais, de trabalho, carcerários e policiais, entre outros.[1]
Nesse sentido, qualquer abordagem sobre ICT deve obrigatoriamente atender aos standards impostos pelos sistemas de direitos humanos. Recorda-se a Sociedade da Informação é intrinsecamente global em sua natureza, sendo que os esforços nacionais (do governo, setor privado e sociedade civil) devem ser respaldados em documentos internacionais e amparados pela cooperação internacional e regional para que haja a promoção de medidas contra usos abusivos das TIC, tais como atos antidemocráticos, capacitismo, racismo, xenofobia e formas correlatas de intolerância, ódio e violência.
A governança da internet foi uma das questões mais controversas na Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI). Dentre os quatro documentos produzidos durante os dois encontros da CMSI (2003 e 2005)[2], ficou claro a preocupação em forjar uma regulação na ICT que envolvesse questões políticas sociais e econômicas comprometidas com o desenvolvimento humano.
Dando seguimento, o Secretário-Geral das Nações Unidas (ONU), em 2006, convocou o Fórum Global de Governança da Internet (IGF) com o objetivo de regulamentar, inspirar e formular diretrizes de conteúdo relacionadas às plataformas da internet direcionada aos governos, setor comercial público e privado e sociedade civil, incluindo comunidades acadêmicas e técnicas.
Durante a Conferência Geral da Unesco de 2015 foram publicados os princípios ROAM[3] que destacam a necessidade de simultaneamente promover direitos humanos, abertura da rede, acessibilidade e participação de várias partes interessadas no desenvolvimento, crescimento e evolução da internet. Esses princípios reconhecem a necessidade fundamental de garantir que o espaço on-line continue a se desenvolver e a ser usado de maneira que conduza ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Em 2021, na Conferência Geral do mesmo órgão, foi lançada a Declaração Windhoek+305, que reconheceu a informação como um bem público e estabeleceu três objetivos para garantir esse recurso compartilhado para toda a humanidade: a transparência das plataformas digitais, o empoderamento dos cidadãos por meio da alfabetização midiática e informacional e a viabilidade da mídia.
Ao falar sobre a informação como um bem público, a Unesco reconhece que esse direito universal é um meio e um fim para o cumprimento das aspirações humanas coletivas, incluindo a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Segundo o órgão, a informação capacita os cidadãos a exercer seus direitos fundamentais, apoia a igualdade de gênero e permite a participação e a confiança na governança democrática e no desenvolvimento sustentável, sem deixar ninguém para trás.
Desde 2022, a Unesco tem produzido um documento denominado “Diretrizes para regular as plataformas digitais: uma abordagem multissetorial para proteger a liberdade de expressão e o acesso à informação”. A segunda versão do documento será discutida e consultada durante a Conferência Global Internet for Trust, a ser realizada na Sede da Unesco em Paris, de 21 a 23 de fevereiro de 2023.
Em sintonia com sua missão estrutural de contribuir para a paz e a segurança, promovendo a colaboração entre as nações por meio da educação, da ciência e da cultura, a Unesco espera que a Conferência sirva como fórum multissetorial de discussão sobre as melhores diretrizes para garantir que as plataformas digitais promovam a liberdade de expressão e a disponibilidade de informações precisas e confiáveis na esfera pública.
Felizmente, o cenário político atual nacional permite nossa colaboração na construção de uma regulação global da internet atrelada ao desenvolvimento humano. Enfatizamos também a necessidade da pressão social dos segmentos sociais vulnerabilizados em seus direitos (incluindo as pessoas com deficiência) para implementação dessas medidas. É essencial lançar as vozes para garantir visibilidade às opressões e barreiras vivenciadas, e, assim, fomentar a elaboração de documentos internacionais, leis e políticas que promovam os direitos humanos na web.
* Joelson Dias é advogado, sócio do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados, Brasília. Ex-ministro substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Representante do Conselho Federal da OAB no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade). Membro da Comissão Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Conselho Federal da OAB. Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
* Ana Luísa Junqueira é advogada parceira do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados, Brasília. Mestre em direitos humanos pela Universidade do Minho em Portugal e doutoranda pela Universidade de Coimbra em direito público.
Referências bibliográficas:
[1] O’NEIL, C. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Rua do Sabão: 2020. 1ª edição. Tradução: Rafael Abraham.
RAJI, I.; BUOLAMWINI, J. Actionable Auditing: Investigating the Impact of Publicly Naming Biased Performance Results of Commercial AI Products. In:CONFERENCE ON ARTIFICIAL INTELLIGENCE, ETHICS, AND SOCIETY, 1., 2019, Honolulu. Proceedings […] New York: ACM, 2019. Disponível em:
https://www.media.mit.edu/publications/actionable-auditing-investigating-the-impact-of-publicly-naming-biased-performance-results-of-commercial-ai-products/. Acesso 16 de fevereiro de 2023.
[2] As reuniões da Cúpula culminaram com a produção dos seguintes documentos: Declaração de Princípios de Genebra de 2003, Plano de Ação de Genebra de 2003, Compromisso de Túnis de 2005 e Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação – 2005. Disponíveis em:
https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf. Acesso 16 de fevereiro de 2023.
[3] O princípio determina que a Internet deve ser baseada em direitos humanos (Rights-based), abertura da rede (Open), acessível a todos (Acessible) e alimentada pela participação de várias partes interessadas (Multi-stakeholder participation).
Fonte: https://congressoemfoco.uol.com.br/