O Diário PcD teve acesso a uma carta aberta do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (LEPED/FE/UNICAMP) em repúdio à gestão da SECADI/MEC e em desagravo à professora Rosângela Machado, sobre a PNEEPEI – Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
O documento é assinado por Maria Teresa Eglér Mantoan, Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED), Faculdade de Educação – FE e Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.
Confira a íntegra do documento, também disponível em https://drive.google.com/file/d/14X0VacMozxbOkHPPyecNEzwDUysiHKGV/view
Excelentíssimo Senhor Luiz Inácio Lula da Silva – Presidente da República
Excelentíssimo Senhor Camilo Santana – Ministro de Estado da Educação
Excelentíssimo Senhor Silvio Luiz de Almeida – Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania
Excelentíssimo Senhor Flávio Dino – Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública
O Brasil enfrentou, por quase sete anos, governos que buscaram solapar o direito constitucional à educação inclusiva, sempre sob o discurso dissimulado de que estariam defendendo a inclusão. Tanto o governo Temer, em 2018, como o governo Bolsonaro, por meio do Decreto 10.502/2020, buscaram soterrar a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI-2008, implementada no segundo mandato do presidente Lula.
Resistimos a todos esses ataques e, no dia da posse do novo governo, vivenciamos uma dupla vitória: a revogação do decreto de Bolsonaro, conhecido como o Decreto da Exclusão, e a assinatura do decreto que recriou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (SECADI/MEC). Nesse decreto, no art. 36, inc. I, determinou-se que à Diretoria de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (DIPEPI) caberia “planejar, orientar e coordenar, em parceria com sistemas de ensino, a implementação da política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva” (grifo nosso). Ou seja, depois de tanta luta, ficamos esperançosos por ver o nome da política reafirmado no documento.
A partir de todo esse empenho inicial do presidente Lula pela educação inclusiva, contava-se que os novos integrantes do MEC voltassem a implementar com urgência a PNEEPEI-2008. Para tanto, graças à mobilização social, o Ministro da Educação, senhor Camilo Santana, empossou a professora doutora Rosângela Machado na função de diretora da Diretoria de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva da SECADI, em razão de seu notório saber e prática na implementação dessa política pública.
Foi com perplexidade que nós, membros do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (LEPED/FE/UNICAMP), tomamos conhecimento dos fatos ocorridos desde a posse da professora Rosângela. Por ter uma conduta ética e discreta, a professora não tornou público que estava passando por uma série de cerceamentos à sua atuação como diretora e constrangimentos no exercício de seu cargo por parte da secretária da SECADI, Maria do Rosario Figueiredo Tripodi. Tanto que, desconhecendo tais fatos, no dia 10 de maio, o LEPED, representado pela professora doutora Maria Teresa Eglér Mantoan e pelo professor doutor José Eduardo de Oliveira Evangelista Lanuti, participou de uma audiência com a secretária. De modo cordial e polido, ela se mostrou aberta ao que LEPED apresentou sobre a retomada da PNEEPEI-2008 e disse que gostaria de contar com as contribuições do Laboratório em sua gestão.
Essa conduta, no entanto, agora revela-se absolutamente incoerente, uma vez que a professora Rosângela Machado faz parte do LEPED e teve desconsiderados pela secretária o seu notório saber na área, sua extensa experiência como gestora e sua contribuição como pesquisadora, autora de livros e formadora de educadores. Desse modo, a secretária, aparentemente aberta às contribuições do LEPED, submeteu um membro do próprio LEPED a situações desrespeitosas, autoritárias e antidemocráticas. Tais condutas não são compatíveis com um governo conduzido pelo presidente Lula.
A secretária não permitiu que a professora Rosângela escolhesse a sua equipe de trabalho. Não buscou saber a versão da professora Rosângela quando esta foi acusada injustamente de atacar escolas especiais por um notório detrator da PNEEPEI-2008 e defensor da segregação escolar no Brasil, senhor Flávio Arns, via ofício ao ministro Camilo Santana. Diante disso, a professora Rosângela passou a ficar isolada dentro do próprio MEC: sem equipe alinhada à PNEEPEI-2008, sem poder representar sua área de atuação em eventos externos, sem ser comunicada sobre informações essenciais à pasta que conduzia, sem ser recebida pela secretária para despachar, dentre outras situações. Além disso, a professora Rosângela apresentou um plano para a retomada da PNEEPEI-2008 à secretária, que postergou por diversas vezes sua deliberação. Fica a pergunta: o que já poderia ter sido realizado, considerando que estamos quase no meio do ano, se à professora Rosângela tivessem sido dadas condições de trabalho efetivo?
Essa lastimável conjuntura levou a professora Rosângela a colocar seu cargo à disposição do senhor Ministro da Educação no dia 15 de maio.
Diante do que foi revelado sobre os bastidores da atual gestão, agora fazem sentido as falas públicas da secretária da SECADI, que admitiu não ser “especialista em política educacional de educação especial”. Observa-se em seu discurso a afirmação da defesa da educação inclusiva, porém, acompanhada de uma série de sinais que demonstram o contrário. Vejamos.
Na audiência pública ocorrida no Senado Federal, em 10 de maio, a secretária, em sua palestra, falou da necessidade de “aperfeiçoamento” da política atual (como fizeram Temer e Bolsonaro). E afirmou que esse aperfeiçoamento se justificaria porque a “política atual” sofre “forte estresse político e social”.
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É preciso que a secretária saiba que esse “estresse” são as pressões que sempre existiram contra a educação inclusiva, mas que, ao longo dos anos, num esforço hercúleo de profissionais da educação, de famílias, de representantes do Ministério Público e do Ministério da Educação (2003-2016), foram se diluindo, dando lugar à construção de um sistema educacional inclusivo – movimento que foi interrompido nos últimos anos.
Agora, ao que parece, a secretária, possivelmente por não ser da área e não ter vivido toda essa luta histórica, está cedendo a tais pressões. Afinal, apenas quem está há muitos anos na defesa dos direitos dos estudantes com deficiência – como é o caso do LEPED e de muitas outras instituições – sabe que, no fundo, essas pressões visam apenas garantir a permanência e o fortalecimento de um ensino exclusivo e segregado. O que a secretária afirma ser um “aperfeiçoamento” será, se concretizado, a implantação de uma versão de política de Educação Especial que agrade os representantes de entidades que se beneficiam da exclusão.
De volta à análise de sua palestra, verifica-se que no slide sobre a legislação aplicável ao tema, a secretária incluiu a Resolução nº 02/2001, do Conselho Nacional de Educação (CNE), cujo conteúdo está superado, pois prevê formas de exclusão escolar. Porém, estranhamente não citou a Resolução nº 04/2009, que justamente regulamenta o Atendimento Educacional Especializado – AEE, que cumpre os preceitos da PNEEPEI-2008.
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Nota-se também que a secretária, ao registrar o marco de 2008, suprimiu o nome da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI-2008, talvez no intuito de evitar o mencionado “forte estresse político”, uma vez que estava em um evento promovido por senadores comprometidos com a exclusão de estudantes em escolas especiais.
Além disso, a secretária apresentou, pela primeira vez em um governo do PT, um gráfico que não mostra as matrículas de pessoas com deficiência em escolas comuns e em escolas especiais, apresentando apenas o número total de matrículas
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Do modo como os dados foram mostrados acima, é impossível saber a evolução das matrículas inclusivas e segregadas, algo fundamental para a condução da PNEEPEI-2008. Aliás, o último gráfico sobre matrículas da Educação Especial publicado pelo governo federal do PT, nos últimos dias da gestão da presidenta Dilma Rousseff em 2016, mostrava que o Brasil vinha cumprindo com seu dever constitucional de não apenas aumentar as matrículas em geral, mas também de promover a inclusão na escola comum e a queda das matrículas na segregação
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Ao não distinguir as matrículas de pessoas com deficiência em escolas comuns e escolas especiais, a secretária mostra mais uma vez que a educação inclusiva é uma questão pouco relevante para a sua gestão. O fato é grave porque é esta autoridade que, em última análise, está representando a visão do MEC sobre a educação inclusiva.
Essa supressão de informação é inadmissível, pois os dados do Censo Escolar de 2022 revelaram uma tendência que precisa ser denunciada: pelo segundo ano consecutivo, o número de bebês e crianças pequenas (da Educação Infantil) matriculadas em escolas especiais aumentou (foram quase mil). Isso não ocorreu durante 12 anos consecutivos, ou seja, desde a publicação da PNEEPEI-2008, que tinha como premissa uma Educação Infantil 100% inclusiva, a segregação estava em declínio. Essa tendência de queda foi interrompida pelos ataques dos últimos anos à PNEEPEI-2008. Tal retrocesso não pode ser varrido para debaixo do tapete. Quem defende a inclusão escolar não se esquiva dos embates que a luta exige, não dialoga com quem desumaniza pessoas com deficiência, não confunde “debate democrático” com permissão para a defesa da violação de direitos humanos fundamentais.
O LEPED atuou com firmeza, desde 2016, na resistência ao arbítrio, ao retrocesso e ao desmonte da PNEEPEI-2008, um documento construído de modo democrático e amparado nas resoluções das Conferências Nacionais da Educação Básica (2008) e da Educação (2010). Lançamos notas e publicações denunciando esse desmonte em 2018, fizemos denúncias junto ao Ministério Público Federal e participamos da luta no Supremo Tribunal Federal para derrubar o Decreto da Exclusão de 2020. E agora, mais uma vez, nos vemos compelidos a agir, diante da atual gestão da SECADI. Infelizmente, em vez de estarmos trabalhando com toda força e energia para retomar e fortalecer a PNEEPEI-2008, estamos aqui denunciando posturas de gestores que alegam defender a inclusão, mas que submetem suas ações a setores conservadores, historicamente defensores da segregação e detratores dos governos passados do PT.
Jamais renunciaremos à defesa da escola para todos. Nesse sentido, pedimos que o presidente Lula e seus ministros da Educação, dos Direitos Humanos e da Justiça voltem sua atenção ao que está se passando na SECADI. Continuamos, como sempre, na busca da consolidação de um sistema educacional inclusivo, um preceito constitucional, sendo a Educação Especial entendida nessa perspectiva.
Gostaríamos, ainda, de agradecer à professora Rosângela Machado por toda a sua fibra e seu compromisso absoluto com a PNEEPEI-2008. Sua coerência, sua firmeza e sua trajetória são motivo de orgulho para todos nós, seus colegas do LEPED.
Seguimos na luta.
Vamos em frente.
Maria Teresa Eglér Mantoan
Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED)
Faculdade de Educação – FE
Universidade Estadual de Campinas – Unicamp
Para participar da manifestação acesse o link:
Crédito: Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados