OPINIÃO
- * Por Igor Lima
Capacitismo não é opinião. É violação de direitos.
Quando uma pessoa com deficiência é ofendida por um agente público, não se trata apenas de um ataque individual. Trata-se de uma mensagem simbólica de exclusão, que reforça estigmas históricos e legitima a marginalização.
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rompe com essa lógica ao afirmar, de forma clara: o poder político não autoriza o desrespeito à dignidade humana.
Em julgamento recente, a 3ª Turma do STJ manteve a condenação de um vereador por ofensas capacitistas proferidas contra uma pessoa com deficiência durante sessão da Câmara Municipal de Lagoa Santa (MG). A Corte decidiu que a imunidade parlamentar não pode ser utilizada como escudo para práticas discriminatórias, reafirmando que direitos fundamentais não se relativizam, nem mesmo dentro do plenário.
O caso: quando o discurso político vira violência simbólica
Durante sessão pública, transmitida pela internet, o parlamentar utilizou o termo “aleijado” para se referir à vítima — expressão historicamente carregada de preconceito e estigmatização.
A fala ultrapassou qualquer limite de crítica política ou debate público e atingiu diretamente a dignidade da pessoa com deficiência.
O vereador foi condenado ao pagamento de R$ 20 mil por danos morais e tentou afastar a responsabilização alegando imunidade parlamentar. O argumento, contudo, foi rejeitado pela maioria dos ministros do STJ.
Imunidade parlamentar: proteção necessária, mas não absoluta
A Constituição Federal assegura a parlamentares a chamada imunidade material, proteção jurídica concedida a vereadores, deputados e senadores para que possam exercer o mandato com liberdade, sem medo de punições por opiniões, palavras ou votos relacionados à atividade política e legislativa.
Essa garantia existe para proteger o debate democrático.
Não existe para legitimar ofensas, humilhações ou discriminação.
No voto condutor, a ministra Nancy Andrighi foi categórica ao afirmar que a imunidade não pode servir de “blindagem” para abusos ou ilegalidades. Quando a manifestação não guarda relação com o exercício legítimo do mandato e viola direitos fundamentais, surge o dever de responsabilização pessoal do parlamentar.
Em outras palavras:
imunidade não é impunidade.
STJ e STF: decisões que se complementam
Para compreender plenamente o alcance dessa decisão, é importante observar o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema.
O STF fixou a tese de que o Estado não deve indenizar pessoas ofendidas por discursos de parlamentares quando essas falas estiverem cobertas pela imunidade parlamentar. Isso significa que o poder público não responde automaticamente por eventuais danos causados por manifestações parlamentares no exercício do mandato.
No entanto — e aqui está o ponto central — o próprio STF deixou claro que, quando o parlamentar ultrapassa os limites da imunidade, a responsabilidade civil é pessoal, recaindo diretamente sobre quem praticou a ofensa.
Em termos simples: o Estado não paga, mas o ofensor responde.
Não há contradição entre as decisões. Ao contrário: elas se complementam.
- O STF define quem responde: o parlamentar, e não o Estado.
- O STJ define quando responde: quando há abuso, discriminação e violação de direitos fundamentais.
Esse alinhamento fortalece a proteção da dignidade da pessoa com deficiência e impede que a imunidade seja usada como salvo-conduto para o capacitismo.
Capacitismo institucional não pode ser normalizado
A decisão do STJ ganha ainda mais relevância ao enfrentar o capacitismo institucional, muitas vezes tolerado ou minimizado quando praticado por agentes públicos.
Quando a discriminação parte de alguém investido de poder político, o dano ultrapassa o indivíduo ofendido e atinge toda a coletividade de pessoas com deficiência, reforçando estigmas e desigualdades históricas.
O Judiciário deixou claro que:
- a liberdade de expressão parlamentar não cobre ofensas capacitistas;
- a pessoa com deficiência não pode ser alvo de humilhação sob o pretexto de debate político;
- o Estado Democrático de Direito exige responsabilidade, não privilégios abusivos.
Fundamentos jurídicos: dignidade, igualdade e não discriminação
A decisão dialoga diretamente com a Constituição Federal, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) e com a melhor doutrina constitucional e de direitos humanos.
Como ensina Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade da pessoa humana funciona como limite material ao exercício de direitos e prerrogativas, inclusive aquelas de natureza institucional. Nenhuma autoridade pode invocar privilégios legais para violar a dignidade de outra pessoa.
Na mesma linha, Flávia Piovesan destaca que o princípio da igualdade exige a adoção de medidas concretas de enfrentamento à discriminação, sobretudo contra grupos historicamente marginalizados, como as pessoas com deficiência.
O que essa decisão representa para a comunidade da pessoa com deficiência
Essa decisão não é apenas jurídica. Ela é pedagógica, simbólica e transformadora.
Ela reafirma que:
- pessoas com deficiência não precisam aceitar ofensas vindas do poder;
- o discurso capacitista gera dano real e não pode ser naturalizado;
- há consequências jurídicas para quem viola a dignidade da PCD, independentemente do cargo ocupado.
Trata-se de um avanço concreto na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e respeitosa.
Prerrogativas não autorizam discriminação
Ao manter a condenação do vereador, o STJ — em consonância com o entendimento do STF — envia uma mensagem clara:
prerrogativas institucionais não autorizam o desrespeito à pessoa com deficiência.
O combate ao capacitismo passa, necessariamente, pela responsabilização de condutas discriminatórias, especialmente quando praticadas por agentes públicos.
A dignidade da pessoa com deficiência não é favor, não é concessão e não é retórica.
É direito constitucional.

- Igor Lima é advogado (OAB/RJ), especialista em Direitos Humanos e sustentabilidade, e pessoa com deficiência. Coordenador da coletânea jurídica “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, citada no STJ, TST, STF e presente em instituições como Harvard e Universidade de Coimbra. Autor de artigos publicados em espaços como ABDConst, Future Law e revistas jurídicas nacionais, atua como palestrante em instituições como UERJ, UFRJ, UFF, OAB/RJ e MPRJ. Dedica-se à pesquisa e defesa dos direitos das pessoas com deficiência, com experiência em inclusão, políticas públicas e ESG.
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