Sobre o caso de Sônia Maria de Jesus e a live do Diário PcD, em 1º de abril

OPINIÃO

  • * Por Rita Mendonça

Já trabalhei com enfrentamento ao trabalho escravo e tráfico de pessoas em diversas posições: Ministério Público do Trabalho e Poder Executivo Estadual de um dos estados que mais exportava mão de obra que acabava em condições análogas a de escravo no corte de cana (Alagoas).

E prossegui. Hoje trabalho numa organização que mantém grandes obras e dedica parte de sua equipe a realizar análises e elaborar planos e ações de enfrentamento dessa terrível condição que é bem mais comum do que se pensa.

“Que live potente!”

Foi a frase que ouvi ao final do encontro de ontem à noite, 1º de abril, e que ficou em mim após participar dessa impactante atividade.

Muitos pensamentos martelando.

Como assim!?

Como posso considerar uma mulher negra e surda como “filha” e diferente de minhas outras filhas (todas independentes, formadas e de classe alta), mantê-la por décadas confinada a uma cozinha, aos afazeres domésticos e sem sequer aprender a ler e falar (nem em português e nem em Libras), comunicando-se apenas com as pessoas da casa por alguns gestos essenciais e básicos necessários para existir!?

Como considero filha e essa pessoa, com cerca de 50 anos de idade não tem sequer documentos básicos como RG e CPF, nunca foi a escola, nunca passou por nenhum atendimento no sistema único de saúde (SUS), possui várias comorbidades tratáveis e até mesmo perdeu dentes por falta de atendimento!?

E como o Estado brasileiro convive com o fato de que o corajoso profissional auditor do Ministério do Trabalho, que enfrentou a situação e resgatou Sônia, acabou punido e perdendo as funções que exercia!?

Como pode o Judiciário brasileiro permitir que o violador dos direitos humanos de Sônia tenha o direito de tê-la de volta em sua residência, inclusive a impedindo indiretamente de conviver socialmente ou com sua família biológica, de quem foi arrancada aos 9 anos de idade!?

Como bem pontuou a também potente Dra. Izabel Maior, há um “que” de síndrome de Estocolmo nessa situação, pois Sônia não sabe nem se comunicar, não sabe que é uma pessoa sujeito de direitos humanos e nem conhece mais nada além da casa em SC, de onde foi resgatada de situação análoga à escravidão e acabou retornando por medida judicial. É o espaço pessoas e condição que lhe trazem alguma sensação de familiaridade e por certo alguma segurança.

Tenho idade próxima a de Sônia e sinto que fui privada de inúmeras oportunidades e vivências. Essa constatação me dói, e olha que são mínimas perto dos estigmas e violações da história dela.

Rezo para que Sônia consiga acordar do pesadelo, mas que não se consuma por dentro, por tudo que lhe foi arrancado e não há mais como consertar.

Que dia triste. Hoje doeu imaginar o amanhecer de Sônia.

  • Rita Mendonça é advogada, pesquisadora e consultora em direitos humanos.

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