** Por Hegle Machado Zalewska
A luta pelos direitos das pessoas com deficiência é multifacetada e exige uma ampla articulação social com diferentes atores, já que a inclusão tem uma dinâmica multivetorizada, sendo o crescimento econômico inclusivo apenas um desses vetores.
RESUMO: Em uma realidade de exclusão da pessoa com deficiência do mercado de trabalho, especialmente por conta da inacessibilidade atitudinal e cultura do capacitismo, é importante o desenvolvimento e o reconhecimento das habilidades, não apenas tendo em vista a empregabilidade, mas também o empreendedorismo. A inclusão profissional não pode se restringir ao marketing empresarial da sustentabilidade e diversidade, ou ao suposto cumprimento da Lei de Cotas para tão somente evitar autuações e multas em decorrência da fiscalização trabalhista. A contratação para posições adequadas a cada colaborador com deficiência, especialmente as pessoas com deficiência intelectual, e um plano de carreira, junto com medidas de engajamento com treinamento e sensibilização de gestores e demais funcionários é o mínimo que as empresas precisam fazer para que haja uma adaptação e permanência da pessoa com deficiência na vaga preenchida. No que diz respeito ao Poder Público, a falta de acesso às informações referentes às pessoas com deficiência (dados não apenas no que se refere ao mundo do trabalho, mas também à mobilidade urbana, saúde, educação e até ao mais básico que é a quantidade de pessoas com deficiência no Brasil) dificulta ou até impossibilita a criação de ações afirmativas adequadas e cobrança da execução das ações teoricamente existentes. O presente artigo traz um pouco da vivência de experts, pessoas com deficiência e familiares na busca por Inclusão Produtiva.
INTRODUÇÃO À INCLUSÃO PRODUTIVA
Alinhados com o movimento global das Políticas Informadas por Evidências (Evidence-Informed Policymaking), aplicando as ferramentas de Tradução de Conhecimento (Know- Ledge Translation), e conduzidos pelo Instituto Veredas, a Fundação Arimax e o Fundo Pranay realizaram um trabalho pioneiro no campo da Inclusão Produtiva, tendo como principal objetivo identificar áreas de atuação promissoras no Brasil para a “geração de trabalho e renda de maneira estável e digna para as populações em situação de pobreza ou vulnerabilidade social, de modo a facilitar a superação de processos crônicos de exclusão social, através do empreendedorismo”[1].
O material[2] publicado pela Fundação Arimax e Fundo Pranay, decorrente do projeto “Inclusão Produtiva no Brasil: oportunidades de impacto”, se relaciona diretamente com a AGENDA 2030 (plano de ação pactuado pelo Brasil e outros 192 países que integram a Organização das Nações Unidas para o fortalecimento da paz universal com mais liberdade, e reconhecimento de que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões é o maior desafio global e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável), da qual podemos extrair, em seu item 23, a importância do empoderamento das pessoas com deficiências e o suprimento de suas necessidades [3].
Dentre os objetivos da Agenda, está a promoção do crescimento econômico inclusivo, que abrange políticas orientadas para o desenvolvimento que apoiem as atividades produtivas, empreendedorismo, e emprego decente (Objetivo 8.3), isso com remuneração igual entre homens, mulheres, inclusive jovens e pessoas com deficiência que exerçam trabalho de igual valor (Objetivo 8.5).
Verifica-se, então, que a Inclusão Produtiva surge como um tema fundamental no que diz respeito aos direitos das pessoas com deficiência, e que das múltiplas vias para alcançar o Crescimento Econômico Inclusivo, estão o empreendedorismo e a empregabilidade.
EMPREENDEDORISMO COMO ALTERNATIVA
Um ponto crucial a ser considerado no Desenvolvimento Econômico Inclusivo da pessoa com deficiência é a presença da família. Durante a infância, a pessoa com deficiência depende da família para seu sustento, para aflorar suas capacidades e competências, ter acesso aos estudos e trabalhar sua independência (na medida das possibilidades). Durante a maioridade, dependendo da realidade de cada um, a pessoa com deficiência continua dependendo da família.
Leopoldina Paes, mãe do André (que está 43 anos de idade, e tem autismo moderado), explica que é comum que o genitor da pessoa com deficiência abandone a família assim que tem ciência do diagnóstico do filho. Nesses casos, se a família possui melhores condições financeiras para atender às demandas do filho, a mãe pode contar com o auxílio de um profissional especializado, o que permitiria que essa mãe trabalhasse.
Já nos casos em que o poder aquisitivo da família é menor, ou a mãe deixa o filho em uma creche para poder trabalhar, ou, nos casos de deficiência que dependa de muitos cuidados, a mãe simplesmente deixa de trabalhar e aí a renda vem tão somente de benefícios do governo.
Leopoldina menciona “conheço famílias nas quais o marido deixou de trabalhar para cuidar do filho e a mãe sustenta a casa costurando e com artesanato, mas o histórico geralmente não é esse. O homem vai embora e a mulher fica sozinha”.
Casos tristes como o ocorrido em Uberlândia/MG, no mês de outubro de 2021, no qual uma mulher e seu filho tetraplégico faleceram em casa, não são raros. O irmão da falecida relatou aos policiais militares que não se encontrava com ela há alguns dias, e que na casa moravam apenas mãe e filho. Essa mãe teria falecido de causas naturais, sem antes ter a oportunidade de pedir ajuda, e seu filho faleceu por falta de cuidados.[4]
Ainda com relação à importância da família na vida da pessoa com deficiência, Beatriz Rennó Biscalchim, consultora de Políticas Públicas do Sebrae SP, explica que muitas vezes a pessoa com deficiência não pode empreender, mas a família pode, por isso o fortalecimento do núcleo familiar é fundamental.
O Sebrae SP vem realizando, por meio de seu departamento de Políticas Públicas, um projeto de Inclusão Produtiva junto a Organizações Comunitárias que atuam com pessoas em situação de vulnerabilidade, para que a situação de exclusão seja diminuída, sendo apresentado o empreendedorismo como uma alternativa. Beatriz esclarece que “pode-se verificar que muitas pessoas empreendedoras não se consideram empreendedoras por não possuírem um CNPJ ou não serem, a seu ver, pessoas bem sucedidas”. Ela complementa dizendo que é uma questão de ter um objetivo e trabalhar para alcançar esse objetivo, é uma questão de atitude empreendedora. [5]
Mariana Grecco, gestora estadual de acessibilidade do Sebrae SP, que possui visão monocular, explica que todos os cursos estão abertos para qualquer pessoa, com ou sem deficiência. Que o Sebrae SP atende de forma personalizada clientes com deficiência, capacitando essas pessoas para o empreendedorismo. Ressalta que “há um trabalho de acessibilidade individual, por exemplo: há uma turma com uma cliente com baixa visão. Entramos em contato com ela e perguntamos como ela preferia que fosse disponibilizado o material”.
Para o atendimento é muito utilizado o aplicativo WhatsApp e os funcionários têm fácil acesso a intérpretes de LIBRAS.
Mariana esclarece que o objetivo do Sebrae é “continuar trabalhando para que o Sebrae SP se fortaleça como uma empresa acessível, e se torne cada vez mais inclusivo”, e disponibilizou para o presente artigo informações internas sobre atendimentos a pessoas com deficiência pelo Sebrae SP no ano de 2021 (de janeiro até 11 de outubro).
Houve 17.499 atendimentos no estado de São Paulo (considerando que as mesmas pessoas costumam entrar em contato com o Sebrae por diversas vezes para se increver em cursos, obter consultoria, mentoria, ou outros serviços), sendo 9.409 atendimentos para pessoas com deficiência física; 3.654 atendimentos para pessoas com deficiência visual; 3.313 atendimentos para pessoas com deficiência auditiva e 1.123 atendimentos para pessoas com deficiência intelectual .
Desse número total de atendimentos, 54,01% se refere a Pessoas Físicas, e 45,99% se refere a Pessoas Jurídicas, o que significa que as pessoas estão, não apenas empreendendo, mas se formalizando.
O relatório interno demonstra, ainda, que as pessoas que mais procuram o Sebrae SP são as com faixa etária entre 39 e 49 anos, seguida da faixa etária entre 49 e 59 anos. Ou seja, pessoas que poderiam estar fora do mercado de trabalho por conta da idade estão investindo fortemente no empreendedorismo.
Os produtos mais acessados são lives sobre finanças, marketing e formalização, e os kits de material mais distribuídos pelo Sebrae SP são para pessoas que fazem cursos específicos voltados ao público feminino (essas mulheres, que são consideradas vulneráveis duplamente, pois possuem alguma deficiência, neste caso são maioria).
A gestora relata que muitas pessoas acabam se tornando empreendedoras pois não conseguem emprego formal. Complementa dizendo que “a pessoa sem deficiência empreende por oportunidade e a pessoa com deficiência empreende por necessidade”.
Caio P. M., que está com 34 anos de idade e tem autismo leve, cursou engenharia agronômica pela Unesp Botucatu, e após 12 anos de formado resolveu mudar de carreira e ter uma atitude empreendedora por conta da dificuldade na inserção do mercado de trabalho.
Dos 12 anos como profissional da agronomia, esteve procurando emprego, sem sucesso, por mais de 10 anos. Dos 5 trabalhos formais que conseguiu, em apenas 1 não foi demitido antes do encerramento do contrato.
Esclarece que as justificativas dos empregadores para o desligamento costumam ser sempre as mesmas: não ter foco no trabalho; não ter proatividade; excesso de perguntas; não saber ouvir; e falar em excesso assuntos não pertinentes ao trabalho.
Caio reconhece que o dinamismo na sua produtividade não era o esperado pelos gestores; que tem dificuldades no relacionamento interpessoal; e que sua comunicação muitas vezes não é assertiva pois precisa ser mais objetivo e menos repetitivo.
Ele recebeu o diagnóstico de autismo em julho de 2018, mas apenas solicitou laudo médico (para se candidatar às vagas abertas para pessoas com deficiência) em julho de 2019.
Inicialmente omitia sua deficiência para os recrutadores, pois sabia que seria estigmatizado e correria o risco de perder oportunidades de vagas almejadas, já que essas não eram destinadas ao cumprimento da cota determinada pelo artigo 93 da Lei Federal nº 8213/91.
Mesmo na busca de emprego via vagas reservadas para pessoas com deficiência, não tem tido sucesso. Percebeu que as vagas costumam ser direcionadas para pessoas com deficiência física (visual e auditiva), então encontrou como alternativa cursar faculdade de ciências contábeis e curso técnico de finanças para conseguir inserção no mercado de trabalho e ao mesmo tempo buscar uma solução no empreendedorismo.
MERCADO DE TRABALHO E CUMPRIMENTO DE COTAS
Quando tratamos do retrato do mercado de trabalho e cumprimento das cotas determinadas pela Lei Federal nº 8213/91, temos como referência o RAIS, que é o registro administrativo no qual a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia apresenta sua Relação Anual de Informações Sociais sobre todos os estabelecimentos formais e vínculos celetistas e estatutários do Brasil.
O último Rais trouxe em seus dados de empregos formais (número de vínculos ativos do ano de 2019), que o estoque total foi de 47.554.211 e a proporção de pessoas com deficiência no estoque de empregos formais foi de 1,10 % [6], apresentou, também, informações sobre a evolução crescente da proporção desse estoque de 1,10%, que em 2010 era de 0,69%, e identificou que sua distribuição se deu nas seguintes porcentagens: física 44,97; auditiva 17,74; visual 16,13; reabilitado 10,54; intelectual 8,97; e múltipla 1,65%.
Entrevistado, José Carlos do Carmo, auditor fiscal, médico do trabalho e mestre em saúde, fala da prática na fiscalização da Lei de Cotas e condições de trabalho das pessoas com deficiência nos dias atuais.
Inicia explicando que quando uma empresa é fiscalizada para contratação de pessoas com deficiência busca-se o olhar qualitativo, o que envolve as condições de acessibilidade arquitetônica, organizacional e sobretudo atitudinal. Complementa ressaltando que muitas vezes o problema de acessibilidade do trabalhador está em seu deslocamento, que a acessibilitade extraturno é fundamental.
José Carlos considera a Lei de Cotas como principal ferramenta para a garantia do direito ao trabalho, e que de nada adianta a Lei se não houver fiscalização.
Esclarece que há necessidades de melhoria na qualidade e eficiência do serviço público, que a auditoria fiscal do trabalho tem sofrido diminuição progressiva e contínua de auditores fiscais. Isso em números absolutos (os auditores se aposentam sem que haja perspectiva concreta de novos concursos públicos), e relativos (ao longo desses anos, mesmo com as crises econômicas, o número de empresas e trabalhadores tem aumentado), mas que isso não pode ser utilizado como justificativa para não apresentar um trabalho eficiente.
Expõe que no início a fiscalização da Lei de Cotas se dava de maneira desorganizada em termos de país, mas que posteriormente o Ministério do Trabalho organizou a fiscalização por meio de projetos. Que hoje o Projeto de Inclusão da Pessoa com Deficiência no Mercado de Trabalho Formal, está organizado em todos os estados da federação e Distrito Federal e existe uma coordenação nacional para garantia de uma certa homogeneidade na forma da fiscalização e critérios utilizados.
Relata que apesar de haver diferença de realidades nos estados e Distrito Federal, de um modo geral há coisas em comum na fiscalização. Empresas argumentam que não há profissionais em número suficiente para que a cota seja preenchida e que a escolaridade não é suficiente, o que são informações descabidas. Salienta que uma grande maioria das pessoas com deficiência não têm a deficiência de forma congênita, ou seja, frequentaram a escola antes de tê-la adquirido.
Diz que as empresas alegam que as pessoas preferem receber o Benefício da Prestação Continuada, entretanto o percentual das pessoas que recebe esse benefício é ínfimo no seu universo e a concessão é automática caso a pessoa fique desempregada. Lembra que alguns chamam o BPC (equivocadamente) de aposentadoria, mas que no caso de falecimento o benefício não se aplicará aos dependentes, ao contrário da pensão decorrente de contribuição junto ao INSS, sendo muito mais interessante financeiramente estar na condição de empregado.
José Carlos explica que algumas empresas aparentemente não conseguem contratar com a velocidade de gostariam ou deveriam. Quando o caso em concreto é analisado (a empresa está investindo na melhoria das condições de acessibilidade), e a empresa não cumpriu a cota no prazo de 120 dias anteriores à aplicação da multa, pode ser celebrado um termo de compromisso no qual a empresa se compromete a desenvolver uma série de ações com cronograma acordado e metas intermediárias até o cumprimento de 100% da cota.
A multa não é o objetivo, mas se não fosse a possibilidade de autuação, a aplicação das cotas não teria avançado, já que como diz o auditor José Carlos, “o bolso é o ponto sensível do empresariado”.
Falamos tanto das artimanhas dos empregadores para evitar a contratação de pessoas com deficiência, que quase nos esquecemos que existem empresas sérias e comprometidas, como é o caso das empresas multinacionais e de grande porte que compõe a REIS (Rede Empresarial de Inclusão Social)[7]. José Carlos reconhece a relevância do movimento colaborativo criado em 2012 que reúne gestores e conselhos de CEOs de empresas que almejam a promoção efetiva da inclusão da pessoa com deficiência.
Perguntado sobre a relação entre cota de aprendizes e cota de pessoas com deficiência, o auditor fiscal e médico do trabalho explica que a legislação atual não permite que a vaga de aprendizagem ocupada por pessoa com deficiência seja contabilizada como cota para pessoa com deficiência, entretanto exalta a natureza da aprendizagem como uma “maneira privilegiada de se fazer uma boa inclusão no trabalho”.
José Carlos esclarece que a fiscalização estimula a contratação de aprendizes com deficiência muitas vezes por meio do termo de compromisso firmado no procedimento especial para a ação fiscal da inclusão da pessoa com deficiência[8] (quando os 120 dias não foram suficientes para cumprir a cota das pessoas com deficiência, mas a empresa está engajada e estabelece uma estratégia para cumprimento). É adiada a cobrança do preenchimento do número de vagas da cota em igual numero ao de aprendizes com deficiência enquanto durar a aprendizagem (como se o aprendiz, apenas temporariamente, e de acordo com assinatura de termo de compromisso, se valesse para a cota da pessoa com deficiência).
Ele exemplifica da seguinte forma: uma empresa precisa preencher a cota de 10 pessoas com deficiência e contrata 6 aprendizes com deficiência para curso de 1 ano e meio de duração. Durante esse 1 ano e meio seria exigido que a empresa preenchesse 4 vagas referentes a cota de pessoa com deficiência e seria adiada a exigência da contratação das 6 pessoas restantes durante esse 1 ano e meio. Findo esse prazo a empresa é obrigada a cumprir o que foi adiado.
É interessante para a própria empresa preparar o trabalhador com deficiência na condição de aprendiz para que as rotinas e cultura da empresa sejam aprendidas, mas não significa que o aprendiz com deficiência tenha necessariamente os planos de assumir uma vaga que cumpriria a cota de pessoa com deficiência, até porque no caso de aprendiz com deficiência a idade superior não tem limite.
No que diz respeito à abertura de vaga específica para pessoa com deficiência a crítica é ferrenha, e nos termos do entrevistado “é uma atitude pouco inteligente pois o talento é desperdiçado. É legítimo que quando as empresas queiram cumprir uma reserva legal, digam que é preferencialmente para pessoas com deficiência, mas as vagas precisam ser abertas a todas as pessoas, caso contrário há discriminação”.
É sabido que as vagas reservadas para pessoas com deficiência costumam exigir menores qualificações técnicas e consequentemente menores salários. A política de ascenção profissional para as pessoas com deficiência é muito limitada e existe a possibilidade legal de autuar de maneira objetiva por discriminação, ademais, a Lei Brasileira de Inclusão[9] prevê pena de reclusão para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação de pessoas em razão de sua deficiência.
Ivone Santana, diretora do Instituto Modo Parités (negócio social criado em julho de 2015 para apoiar empresas, Organizações, Instituições, e Movimentos na estruturação de seus programas de diversidade e inclusão de forma sustentável), é também Secretária Executiva da Rede Empresarial de Inclusão Social, e já desenvolve metodologias de sucesso na área da inclusão desde sua atuação como executiva em uma das maiores plataformas digitais de varejo com pontos físicos do Brasil.
Medidas impopulares como cancelar contratos com empresas que fazem recrutamento e seleção, e eliminar vagas exclusivas para pessoas com deficiência, fizeram parte de sua estratégia para inclusão efetiva que culminou na contratação de 800 pessoas com deficiência que de fato permaneceram na empresa.
Ivone, que também faz parte do Conselho Gestor da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, ao ser questionada sobre algumas das maiores dores na inclusão, mencionou a falta de convivência, o distanciamento e a quantidade ínfima de pessoas com deficiência que estão nos cargos de liderança.
Raphael Denadai, o primeiro CEO com deficiência da Sky[10], é uma exceção à regra dos cargos administrativos com salários baixos e pouca exigência técnica aos quais as pessoas com deficiência estão submetidas.
Alexsandra Romualdo – assistente social da Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de funcionários do Banco do Brasil e da Comunidade (APABB) núcleo Rio Grande do Norte – conta um pouco sobre o projeto Ação Dignidade; projeto Empregablidade; o convênio firmado com a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte; e as dificuldades para promover o emprego apoiado.
Explica que o maior público atendido pela APABB RN é a pessoa com deficiência intelectual, e que há muito preconceito pois as pessoas confudem deficiência intelectual com doença mental. Menciona o estigma das pessoas com síndrome de Down como “bonitinhas, fofinhas, boazinhas” e que estas precisam ser tratadas como adultas, como profissionais, que isso por si só já é um desafio.
Esclarece que outra problemática é a educação deficitária, pois os conteúdos não são apresentados de forma adaptada para cada pessoa e é comum as pessoas com deficiência terminarem o ensino médio, mas sem qualificação para o mercado de trabalho.
Uma solução encontrada pela APABB RN é oferecer uma formação geral para o mundo do trabalho (Leis que se referem às pessoas com deficiência, etiqueta, vestuário, comportamento), e por último é oferecida a capacitação específica para cada área (administrativa ou voltada pra o atendimento externo). Antes do início da pandemia, a APABB tentou reatar uma parceria com o Senai para capacitação de jovens para serem recepcionistas em eventos, mas tudo foi suspenso. Um dos projetos da Associação é focado nesse tipo de prestação de serviço, o projeto Ação Dignidade, que inclusive inspirou a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte a contratar jovens com síndrome de Down para trabalharem voluntariamente no Departamento Cerimonial, recebendo ajuda de custo pela prestação dos serviços (esses jovens aprendem uma noção administrativa e toda a parte do atendimento ao público).
O projeto Ação Dignidade insere jovens no mercado de trabalho eventual de recepção em congressos, feiras e eventos em geral. Um caso que chamou a atenção de toda a equipe da organização de um congresso internacional, foi o de um jovem com deficiência intelectual, decorrente de meningite, que sabia falar espanhol e por conta disso foi o único recepcionista apto a receber uma comitiva toda de espanhóis para o evento. Como o jovem foi interditado pela família, o que não é incomum, ele pode trabalhar em alguns eventos mas não poderia, por exemplo, trabalhar via projeto Empregabilidade da APABB, que insere a pessoa com deficiência no mercado formal de trabalho.
Alexsandra lamenta que algumas famílias prefiram recorrer ao BPC ou aposentadoria (mediante interdição) em detrimento da realização profissional das pessoas com deficiência.
Ela explica que a Instituição dá suporte e faz mediação entre usuário, família, e empresa. Que no começo da relação profissional a presença da APABB é mais efetiva na mediação, depois são oferecidas as consultorias e realizadas visitas.
A assistente social conta que há um jovem com autismo que trabalha há 7 anos em uma construtora por intermédio do projeto Empregabilidade. Ele terminou o curso superior em economia, mas trabalha como auxiliar de almoxarifado pois apesar da excelente memorização recente para números, a capacidade para memorização de longa data é prejudicada. Sempre que ele sai de férias precisa ser feita uma nova capacitação pois não se recorda bem das atividades que realizava. Alexsandra o acompanha na empresa e sugeriu férias quinzenais para facilitar a execução das atividades no retorno das férias. Esse é um exemplo de que a capacitação contínua é fundamental, especialmente nos casos de pessoas com deficiência intelectual. Muitas vezes a capacitação universitária não é tão efetiva quanto se espera.
Alexsandra expõe que o empregador sempre quer contratar alguém com uma deficiência leve, e que muitas vezes as empresas querem preencher a cota de vagas para pessoas com deficiência, mas ao procurar a APABB deixam claro que esperam que a pessoa se adapte à vaga e às condições de trabalho, e não o inverso. Em decorrência disso passam-se 3 meses, a pessoa é demitida, a empresa recebe multa e volta a aprocurar a APABB repetindo o ciclo.
Entretanto, a experiência junto à OAB/RN foi diferente. A Ordem dos Advogados precisava atingir a cota, procurou a APABB e solicitou o perfil dos candidatos para avaliar quais cargos seriam mais adequados. A posição foi escolhida sob medida para aquela pessoa com deficiência. A APABB fez a sensibilização com todos os funcionários daquela unidade da OAB e acompanha a jovem desde então.
Alexsandra esclarece que o trabalho de sensibilização com as empresas é fundamental para que os gestores e demais funcionários entendam a necessidade das várias adaptações, em especial a atitudinal.
Maria de Fátima Rebouças da Silva, assistente social, irmã do Gerson (que está com 35 anos de idade e tem síndrome de Down), fala sobre a experiência profissional do irmão com o emprego apoiado e a qualidade de vida que ele adquiriu assim que começou a ter maior independência.
Relata que a empregabilidade do irmão era muito rotulada pelo fato dele não ter completado o ensino fundamental, que foi uma decisão da família estar junto para que o Gerson pudesse trabalhar.
Gerson trabalha em uma rede de farmácias que entende as demandas que ele possui no contraturno (terapias e atividades), então ele está registrado para trabalhar de segunda à sexta-feira num período de 4h diárias. Apesar da carga horária ser diminuída, a empresa optou por não reduzir o salário proporcionalmente à jornada. Sendo assim, a farmácia paga o teto da categoria.
Mesmo considerando que não há redução salarial, os gastos com transporte por aplicativo têm sido muito altos, já que por segurança a família não permite que Gerson se utilize de transporte público sozinho. Fátima esclarece que de fato o trabalho não é monetariamente interessante, mas que vale muito a pena pois o irmão ganhou muita qualidade de vida por estar em contato com outras pessoas, se sentir útil, fazer parte da produção da sociedade.
Ela conta que o irmão está trabalhando há 7 anos e os resultados positivos são bem claros. Explica que ele está na idade de ter declínios com envelhecimento precoce, mas pelo contrário, está muito bem de saúde.
Perguntado se o irmão demonstra interesse em investir em alguma habilidade específica para talvez se lançar como empreendedor, Fatima responde que não existe nenhuma pretensão nesse sentido, e que, aliás, tem sérias críticas em relação ao empreendedorismo, pois “o Estado não facilita nenhum caminho, você tem que ter um bom capital para suprir todas as demandas”. Complementa dizendo que o fato da necessidade da atuação da família para gerir um negócio o inviabiliza completamente .
Comenta que é desafiador ter um familiar com deficiência intelectual no mercado de trabalho, e reconhece que é imprescindível lançar mão de uma rede de serviços de apoio que faça a sensibilização constante dos funcionários para evitar o discurso capacitista ou a infantilização. Gerson recebe suporte de emprego apoiado da instituição ADID, sempre que há alguma nova demanda na farmácia a supervisão da ADID é que o capacita.
A empresa ganha pois se sabe que alguns clientes vão a essa farmácia por causa da simpatia e bom atendimento de Gerson; Gerson se sente realizado; e por fim, toda a sociedade ganha pois ele movimenta a economia.
Fátima ressalta que as famílias precisam entender a responsabilidade da pessoa com deficiência trabalhar nos dias propostos, mesmo que seja uma emenda de feriado, por exemplo, e que a pessoa com deficiência precisa ter o compromisso de chegar no horário e ter comportamento profissional durante a jornada de trabalho. Diz que é um trabalho em conjunto, e é desgastante, mas está sendo plantado um futuro de saúde e bem-estar.
A Inclusão Produtiva, seja via empreendedorismo ou empregabilidade, precisa ter um ingrediente pessoal que resulte em realização. É de olhar cada pessoa como única que se trata a inclusão. É o poder de escolher como estar feliz.
Palavras-chave: Inclusão Produtiva; Empregabilidade; Empreendedorismo; Lei de Cotas; Pessoas com Deficiência; Mercado de Trabalho.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 de jul. 1991. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/Leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 11 nov. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 de set. 2015. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 11 nov. 2021.
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria de Inspeção do Trabalho. Instrução Normativa nº 98, de 15 de agosto de 2012. Dispõe sobre procedimentos de fiscalização do cumprimento, por parte dos empregadores, das normas destinadas à inclusão no trabalho das pessoas com deficiência e beneficiários da Previdência Social e reabilitados. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 de ago. 2012. Disponível em: <http://www.anamt.org.br/site/upload_arquivos/legislacao_-_instrucoes_normativas_2012_181220131710287055475.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2021.
BRASIL. Ministério do Trabalho. Painel de Informações da Rais: divulgação ano-base 2019. Out. 2020. Disponível em:
<https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMmQ2ZWVkZjUtNGQyOS00YzVlLWE5YmMtMDc3MmM3NjIyMzdhIiwidCI6ImNmODdjOTA4LTRhNjUtNGRlZS05MmM3LTExZWE2MTVjNjMyZSIsImMiOjR9&pageName=ReportSectionb52b07ec3b5f3ac6c749>. Acesso em: Acesso em: 11 nov. 2021.
ÉPOCANEGÓCIOS. “O viés está dentro das pessoas, mesmo que elas não percebam” diz primeiro CEO PcD da Sky. 3 jun. 2021. Disponível em:
<https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2021/06/o-vies-esta-dentro-das-pessoas-mesmo-que-elas-nao-percebam-diz-primeiro-ceo-pcd-da-sky.html>. Acesso em: 11 nov. 2021.
G1. Corpos de mãe e filho são encontrados em residência no Bairro Tocantins em Uberlândia. 13 out. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/mg/triangulo-mineiro/noticia/2021/10/13/corpos-sao-achados-em-residencia-no-bairro-tocantins-em-uberlandia.ghtml>. Acesso em: 11 nov. 2021.
ONU (Organização das Nações Unidas). Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. 2015. Disponível em:
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SEBRAE. O que é ser empreendedor. 23 jan. 2019. Disponível em: <https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/bis/o-que-e-ser-empreendedor,ad17080a3e107410VgnVCM1000003b74010aRCRD>. Acesso em: 11 nov. 2021.
VAHDAT, V.S. et al. Inclusão Produtiva no Brasil: evidências para impulsionar oportunidades de trabalho e renda. São Paulo: Internet, 2019. Disponível em: <https://arymax.org.br/conhecimento/inclusaoprodutivanobrasil/inclusao_produtiva_estudo_completo.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2021.
[1] Primeira definição de inclusão produtiva proposta na publicação resultado do projeto “Inclusão Produtiva no Brasil: oportunidades de impacto”, uma das fontes de pesquisa do presente artigo.
[2] https://arymax.org.br/conhecimento/inclusaoprodutivanobrasil/inclusao_produtiva_estudo_completo.pdf
[3] https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustentavel
[4]https://g1.globo.com/mg/triangulo-mineiro/noticia/2021/10/13/corpos-sao-achados-em-residencia-no-bairro-tocantins-em-uberlandia.ghtml
[5] Maiores esclarecimentos sobre o que é o empreendedorismo em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/bis/o-que-e-ser-empreendedor,ad17080a3e107410VgnVCM1000003b74010aRCRD
[6]https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMmQ2ZWVkZjUtNGQyOS00YzVlLWE5YmMtMDc3MmM3NjIyMzdhIiwidCI6ImNmODdjOTA4LTRhNjUtNGRlZS05MmM3LTExZWE2MTVjNjMyZSIsImMiOjR9&pageName=ReportSectionb52b07ec3b5f3ac6c749
[7] https://www.redeempresarialdeinclusao.com/
[8] Artigo 16 e seguintes da Instrução Normativa da Secretaria de Inspeção do Trabalho nº 98/2012. http://www.anamt.org.br/site/upload_arquivos/legislacao_-_instrucoes_normativas_2012_181220131710287055475.pdf
[9] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
[10] https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2021/06/o-vies-esta-dentro-das-pessoas-mesmo-que-elas-nao-percebam-diz-primeiro-ceo-pcd-da-sky.html
* OPINIÃO reflete apenas e somente o ponto de vista do autor. A reprodução é autorizada, desde que, devidamente citada a fonte.
** Hegle Machado Zalewska – Advocacy; advogada; consultora de projetos sociais; produtora de conteúdo; coordenadora voluntária do Núcleo de Comunicação Estratégica do Fórum Paulista de Entidades de Pessoas com Deficiência.