OPINIÃO
- Por Jairo Varella Bianeck
Quando uma lei, criada para promover inclusão, acaba por excluir uma parcela vulnerável da sociedade, algo precisa ser revisto. Esse é o caso do §3º do Art. 149 da Lei Complementar nº 214/2025, que exige que veículos adquiridos por pessoas com deficiência sejam adaptados exclusivamente para condução própria como condição para a concessão de benefícios fiscais. Tal disposição, ao invés de atender a seu propósito inclusivo, gera uma discriminação injustificada, violando princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, como a dignidade da pessoa humana e a isonomia.
Este artigo busca explicar, de forma clara e fundamentada, como essa exigência contraria o ordenamento jurídico brasileiro e prejudica as pessoas que mais necessitam do benefício.
O Problema do §3º do Art. 149
O §3º do Art. 149 determina que o benefício fiscal só será concedido a pessoas com deficiência física capazes de dirigir, desde que o veículo adquirido seja adaptado para sua condução. Essa regra exclui pessoas com deficiência que, por limitações físicas severas, não conseguem dirigir, mas dependem de veículos adaptados para seu transporte, frequentemente conduzidos por familiares ou cuidadores.
Embora a norma busque evitar fraudes e garantir que o benefício fiscal atenda a quem realmente necessita, ela desconsidera a realidade social e impõe uma barreira desarrazoada ao acesso ao benefício.
Os Princípios Constitucionais Violados
1. Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, III, da CF)
A dignidade da pessoa humana é o alicerce do Estado Democrático de Direito, assegurando que todos os indivíduos tenham suas necessidades específicas respeitadas. Para pessoas com deficiência, a mobilidade não é apenas um direito, mas um requisito essencial para o exercício de outros direitos, como saúde, educação, trabalho e lazer.
Ao condicionar o benefício fiscal à condução própria, o §3º ignora a existência de pessoas com deficiência severa que não podem dirigir, mas que dependem de transporte adaptado para garantir sua autonomia e inclusão. A norma, portanto, compromete diretamente a dignidade desses indivíduos, negando-lhes a oportunidade de participar plenamente da sociedade.
2. Isonomia (Art. 5º, caput, da CF)
O princípio da igualdade exige que pessoas em condições semelhantes sejam tratadas de forma equivalente e que aqueles em situações desiguais recebam tratamento diferenciado, proporcional às suas necessidades. O §3º do Art. 149 cria uma distinção injustificada entre:
Pessoas com deficiência física que conseguem dirigir veículos adaptados;
Pessoas com deficiência física que dependem de terceiros para conduzir o veículo.
Essa diferenciação não se justifica, pois ambas as categorias enfrentam barreiras significativas à mobilidade. Ao favorecer apenas um grupo, a norma reforça desigualdades, violando o dever do Estado de promover a igualdade material.
3. Proporcionalidade e Razoabilidade (Art. 5º, LIV, da CF)
A proporcionalidade é um princípio que exige que as medidas legislativas sejam:
Adequadas: capazes de atingir o objetivo proposto;
Necessárias: sem alternativas menos gravosas para alcançar o mesmo fim;
Proporcionais em sentido estrito: equilibrando os benefícios e prejuízos causados.
Embora a exigência de adaptação própria busque evitar desvios na concessão do benefício fiscal, ela não é necessária, já que mecanismos como laudos médicos e fiscalização poderiam atingir o mesmo objetivo de forma menos excludente. Além disso, a medida é desproporcional, pois prejudica uma parcela vulnerável da população que depende do benefício para acessar direitos básicos.
Impactos Sociais e Jurídicos da Norma
A exclusão de pessoas que não podem dirigir, mas necessitam de transporte adaptado, compromete a finalidade inclusiva do benefício fiscal e agrava desigualdades sociais. Por exemplo, considere uma pessoa com tetraplegia que depende de um cuidador para se locomover. Mesmo necessitando de um veículo adaptado, essa pessoa não terá acesso à isenção fiscal prevista pela norma, enfrentando barreiras financeiras para garantir sua mobilidade.
Essa situação contraria o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que exige que o Estado promova acessibilidade e elimine barreiras que limitem a autonomia e a participação social das pessoas com deficiência.
Além disso, a norma ignora a realidade de muitas famílias brasileiras, onde cuidadores assumem a responsabilidade pelo transporte de pessoas com deficiência. Ao excluir essas situações, o §3º agrava o custo financeiro para famílias que já enfrentam desafios significativos.
O Papel do Supremo Tribunal Federal (STF)
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem reafirmado, em diversas decisões, a importância de garantir igualdade material e inclusão social para pessoas com deficiência. Em casos como a ADI 5357/DF, o STF destacou que normas que criam discriminações desarrazoadas contra grupos vulneráveis violam a Constituição.
No caso do §3º do Art. 149, o STF pode atuar para corrigir essa injustiça, declarando a inconstitucionalidade da exigência de adaptação exclusiva para condução própria e garantindo que o benefício fiscal alcance todos que dele necessitam.
Proposta de Solução
O §3º do Art. 149 da Lei Complementar nº 214/2025 viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da proporcionalidade. Ao excluir pessoas com deficiência que não podem dirigir, mas dependem de veículos adaptados, a norma cria uma barreira injustificada à inclusão social e contraria a finalidade do benefício fiscal.
Para corrigir essa distorção, propõe-se que o Legislativo reformule a norma, eliminando a exigência de adaptação exclusiva para condução própria e ampliando o benefício fiscal para todos que dependam de veículos adaptados, independentemente de quem seja o condutor. Alternativamente, cabe ao STF declarar a inconstitucionalidade do dispositivo, garantindo o respeito à Constituição e aos direitos das pessoas com deficiência.
Somente assim será possível assegurar uma sociedade verdadeiramente inclusiva, onde a dignidade e a igualdade de todos sejam plenamente respeitadas.
- Jairo Varella Bianeck é advogado e um dos Coordenadores Jurídico da ANAPCD.