Será que o Símbolo de Acessibilidade das Nações Unidas é, de fato, a melhor representação das pessoas com deficiência?

Será que o Símbolo de Acessibilidade das Nações Unidas é, de fato, a melhor representação das pessoas com deficiência? OPINIÃO - * Por Marcus Kerekes

OPINIÃO

  • * Por Marcus Kerekes

Contexto Histórico

Símbolos são parte do cotidiano da humanidade desde as primeiras civilizações, antes mesmo da escrita alfabética se estabelecer, com seus desenhos rupestres (pictogramas). As finalidades sempre foram várias: contar histórias, registrar ritos, indicar caminhos, demarcar territórios, identificar clãs, ensinar, regular o comércio, padronizar experiências cotidianas etc. A partir do século XX, com as fronteiras dos países se tornando mais permeáveis, a demanda por signos mais universais, neutros e legíveis em diversos idiomas cresceu. Mais adiante, os avanços tecnológicos que experienciamos hoje consolidaram essa perspectiva, já que os dispositivos que utilizamos no dia a dia dialogam com a ideia de acessibilidade, adotando representações que devem funcionar para todas as pessoas.

Diante da relevância dos símbolos no decorrer dos anos, a partir da década de 1950, a Organização Internacional de Padronização (ISO) institui iconografias, que por vezes passam despercebidas, mas que são fundamentais para organizar a dinâmica social hoje — a placa na porta do banheiro, o sinal de trânsito, vagas de estacionamento, as orientações em uma embalagem, o botão do controle remoto, o ícone do aplicativo… 

É aqui que o Símbolo Internacional de Acesso é desenvolvido (ISA, 1968), representando um avanço quanto à acessibilidade e inclusão. Aquela pessoa cadeirante, que é amplamente utilizada para indicar acessibilidade em diferentes espaços, foi criada por Susanne Koefoed, uma designer dinamarquesa, à época estudante, durante uma oficina promovida pela Rehabilitation Internacional, organização global que atua em prol das pessoas com deficiência. A demanda era um símbolo de auxílio técnico prático, facilmente identificável à distância, autodescritivo e livre de ambiguidades. Inicialmente apenas a cadeira integrava o ícone. Depois, humanizou-se com a adição da pessoa, trazendo-a para o centro do debate. Posteriormente (anos 1980), ele foi adotado como padrão, tornando-se parte do ISO 7001.

Porém, ao longo das décadas, críticas foram tecidas a seu respeito, acompanhando a evolução do entendimento sobre a condição de deficiência, que passa a ser compreendida como uma característica individual de cada pessoa, que pode ter uma vida autônoma apesar das inúmeras barreiras sociais existentes. O indivíduo estático na cadeira de rodas se tornou, então, uma representação lida como médica, passiva, frágil e estereotipada. Pensando nisso, nos anos 2010, artistas e ativistas estadunidenses propuseram uma revisão do símbolo, sugerindo ação, autonomia e empoderamento. O resultado do Accessible Icon Project é uma pessoa em cadeira de rodas inclinada para frente, com os braços em movimento.

Um incômodo, contudo, permaneceu: o signo não representaria as deficiências em sua diversidade, tornando-se, de alguma forma, excludente. Além disso, a ênfase na ação pode, segundo algumas leituras, reforçar ideias capacitistas ao se centrar na performance física ao invés de acolher a diversidade das experiências das PcD, que inclui pessoas sem qualquer mobilidade. 

Uma iniciativa recente que vem tentando desde 2015 organizar esse desafio vem das Nações Unidas que, ao lado da Organização Internacional para Padronização, busca pensar uma abordagem mais inclusiva, chamada de Accessibility Logo ou Símbolo de Acessibilidade da ONU. Agora, a figura é composta por um círculo central (representando a cabeça) com braços abertos voltados para cima, evocando, de acordo com as instituições autoras, um gesto de inclusão, liberdade, acessibilidade e dignidade humana. Diferente do símbolo da cadeira de rodas, ele não se refere a uma deficiência específica, podendo representar todas as pessoas com deficiência — intelectual, auditiva, visual, física, sensorial, psicossocial e múltipla. 

Principais Críticas

Analisando-o, porém, caímos em pontos sensíveis importantes, que impactam diretamente as 1,2 bilhões de pessoas com deficiência ao redor do planeta (ONU).

A abstração excessiva tornou o símbolo tão genérico que não comunica diretamente a ideia de deficiência. Isto é, ao invés de presentificá-la de alguma maneira, acaba por invisibilizá-la por completo. Entre as consequências, destacamos que pessoas sem familiaridade com o tema podem não reconhecer o ícone, fazendo com que ele se torne uma barreira, uma desculpa para exclusão, sinônimo de constrangimentos, um signo ineficiente às práticas do dia a dia. Também compromete possibilidades de empatia que outras representações endossaram de forma mais bem sucedida e enfática.

Outro ponto relevante é que a sensação de pertencimento que o símbolo poderia gerar na comunidade PcD se diluiu. Uma vez que nenhuma característica é afirmada no Accessibility Logo, e que temos inúmeras dificuldades de representação e representatividade das pessoas com deficiência nas comunicações de modo geral (audiovisual, fotografia, publicidade, design etc.), entende-se que perdemos um espaço de alcance global de conexão e materialidade.

Terceiro aspecto: a pessoa representada ao centro do novo ícone parece ilustrar um corpo que segue padrões de mobilidade e proporção considerados típicos, desprezando a infinidade de variações corporais comuns a pessoas com deficiência. Isso anula a circunstância oportuna de representar distintas formas de ser, que incluem movimento, expressão, ocupação do espaço etc.

Ademais, para sinalizações funcionais (banheiros, elevadores, meios de transporte etc.), o símbolo é considerado ambíguo ou até mesmo vazio de sentido. Ao se pretender universal, como mencionado acima, acaba não comunicando visualmente o que precisa ser comunicado. E o que precisa ser transmitido nada mais é que uma garantia legal: instrumentos como a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) 13.146/15 trazem aspectos de identificação espacial como direito das PcD. 

Portanto, a demanda inicial, lá dos anos 1970, tinha um sentido prático que deve ser preservado: simplicidade, autodescrição, operacionalidade. 

Por fim, o quinto ponto talvez indique a gênese de todos os problemas mencionados: a ausência de consulta ampla para a sua construção. Quanto ao seu desenvolvimento, muitas organizações de pessoas com deficiência alegaram que não participaram da criação do Símbolo de Acessibilidade da ONU, indicando que ele não foi testado e sabatinado pela sociedade. Isso o enfraquece, tornando-o apenas um ícone institucional, sem significado técnico, político e social.

Vale reforçar que neste contexto quaisquer alterações não se referem apenas a questões estéticas. São relevantes para que todos repensem o entorno e a interação com o meio, sugerindo mudanças de mentalidade social. Nos lembram que acessibilidade é um direito que beneficia todas as pessoas e tem sentido universal, como reforça a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas quando fala de vida digna e liberdades, assim como a Constituição Federal brasileira.

Comunicação Inclusiva

Desenvolver signos no contexto de Diversidade é quase sempre um desafio para os profissionais de Comunicação, pois partimos de abstrações que deixam características únicas dos indivíduos ou grupos pelo caminho. Entretanto, pelo menos dois aspectos precisam estar em foco quando se move energia para fazê-lo. 

O primeiro deles é o entendimento da Comunicação como um direito legalmente previsto, exercitado cotidianamente enquanto valor de interesse coletivo, público, de todos. Está a serviço da sociedade e, portanto, da diversidade e da inclusão. O segundo diz respeito às perguntas-chave sobre acessibilidade, linguagem e representatividade. Isto é, uma Comunicação Inclusiva questiona se todos têm acesso, se todos compreendem e se todos se identificam.

A luz destes dois pontos, pode-se dizer que o Símbolo de Acessibilidade da ONU parece ir na contramão disso. Não é livre de barreiras, dada sua ambiguidade e generalidade; embora pretenda organizar diferentes pontos de vista e experiências, falha na linguagem gráfica a ponto de não ser percebido como norma representativa; não colabora para que pessoas com deficiência se sintam representadas ou que pessoas sem deficiência entendam a representação deste marcador já que é pouco inteligível. Outras questões podem ser levantadas: O retrato é digno e fidedigno? O ícone conscientiza e agrega valor? Tem seu propósito claro? As inovações suplantam convenções? Considera diferentes circunstâncias de uso?

Conclusão

A experiência com o Símbolo de Acessibilidade das Nações Unidas é um ótimo exemplo de como vieses funcionam. Às vezes acreditamos que estamos fazendo uma coisa boa. Que somos capazes de avaliar objetivamente a realidade livres de nossas crenças, preconceitos, preferências, associações etc., quando na verdade estamos fabricando padrões excludentes ou pouco representativos. Talvez estejamos longe de encontrar uma solução universal e que realmente acolha a deficiência em todas as suas expressões, mas, até lá, o que temos precisa cumprir sua função social.

____

  • * Marcus Kerekes é CEO e confundador da Diversitera. Cadeirante há 25 anos, Marcus Kerekes é gestor de Marketing e Tecnologia, com 15 anos de carreira, tendo ocupado cargos de liderança em empresas renomadas como Dupont, Dow e Microsoft, no Brasil e nos Estados Unidos. Com MBA pelo IESE (Barcelona) e Pós-Graduação pela Thunderbird School of Management (Phoenix), tem fascinação por comportamento humano e acumula, além de sua própria vivência como Pessoa com Deficiência em grandes corporações, a experiência de gestão de times e mentoring de diversos profissionais, com e sem deficiência.

Compartilhe esta notícia:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore