OPINIÃO
- * Por Igor Lima
Falar de saúde mental das pessoas com deficiência é falar de muito mais do que diagnósticos ou atendimento especializado. É falar de dignidade, de pertencimento e da forma como a sociedade reage à nossa existência. Para muitas pessoas com deficiência — e para mim também — a saúde mental é atravessada por olhares, barreiras e expectativas que começam muito antes de qualquer consulta psicológica.
A verdade é simples e dura: quando o ambiente nos trata como menos capazes, menos adultos, menos completos, isso deixa marcas. E essas marcas adoecem.
1. O impacto invisível do capacitismo no emocional
O capacitismo não é um episódio isolado. É um ambiente.
E ambientes, quando hostis, adoecem silenciosamente.
A hiperinfantilização — quando tratam pessoas com deficiência como eternas “meninas e meninos” — sufoca escolhas e reduz possibilidades. A adultificação — quando esperam que sejamos sempre fortes, resilientes e “exemplares” — rouba o direito de sentir fragilidade.
Os dois extremos produzem solidão emocional, insegurança e exaustão. E isso não é teoria: é cotidiano.
Como ensina Izabel Maior, referência do modelo social, a vulnerabilidade não está na deficiência, mas “na ausência de acessibilidade, apoio e políticas adequadas”.
Não é a deficiência que adoece — é o mundo que insiste em ser inacessível.
2. Saúde mental: não é escolha política, é direito fundamental
Aqui entra um ponto essencial que muitas vezes passa despercebido:
saúde mental não é benevolência. É direito constitucional.
A Constituição Federal estabelece que o direito à saúde deve ser garantido de forma integral (art. 196). A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência — com status constitucional — determina, em seu art. 25, que o Estado assegure acesso a serviços de saúde “da mesma qualidade e variedade” que as demais pessoas recebem.
Ou seja: oferecer um atendimento psicológico inacessível, despreparado ou capacitista não é apenas uma falha técnica — é violação constitucional.
Esse ponto precisa ser dito com clareza, porque reforça que a saúde mental da pessoa com deficiência não pode ser tratada como “boa vontade”:
é obrigação legal, e obrigação da mais alta hierarquia jurídica do país.
3. Quando o sistema de saúde não está preparado
E é justamente nessa hora que percebemos a distância entre o que a lei diz e o que as pessoas vivem.
Apesar da LBI exigir acessibilidade nos serviços de saúde — física, comunicacional e atitudinal — o cotidiano mostra:
- profissionais sem preparo em comunicação inclusiva;
- falta de adaptação em consultas;
- patologização da deficiência;
- ausência de protocolos específicos no SUS;
- serviços que falham em reconhecer singularidades.
Como lembra Flávia Piovesan, direitos sociais só existem quando se tornam materialmente acessíveis.
Sem profissionais capacitados, o Estado cumpre a lei só no papel — não na vida real.
4. A sobrecarga emocional das barreiras diárias
Antes de chegar ao consultório, a pessoa com deficiência já enfrentou:
- transporte inacessível,
- ambientes hostis,
- escolas sem apoio,
- convenções sociais que questionam sua autonomia,
- processos seletivos excludentes,
- mensagens constantes de que “não é capaz”.
E isso não passa ileso.
Uma sociedade que duvida da sua autonomia diariamente produz impactos que nenhum diagnóstico explica sozinho.
Pessoas com deficiência não adoecem por serem quem são, mas por não poderem ser plenamente quem são.
5. A saúde mental como obrigação do Estado e das instituições
Outro ponto jurídico importante:
A LBI estabelece que o cuidado em saúde deve respeitar acessibilidade, autonomia e escolha da pessoa com deficiência.
Isso abrange integralmente:
- psicologia,
- psiquiatria,
- neuropsiquiatria,
- apoio educacional e social.
Quando esse cuidado não é acessível, não é “erro do sistema”: é violação de dever legal — e de dignidade.
Como explica Ingo Sarlet, a dignidade humana não é conceito abstrato: é a base concreta para exercer qualquer direito.
Sem ela, os demais direitos ficam vazios.
6. A dimensão afetiva da inclusão
A saúde mental também passa por algo que nenhuma lei sozinha consegue resolver: pertencimento.
Pertencer significa:
- ser visto como adulto,
- ter liberdade de sentir,
- poder errar, discordar, decidir,
- ter sua autonomia respeitada,
- não ser infantilizado nem supercobrado.
Incluir não é apenas garantir acesso físico: é garantir espaço emocional.
E quando isso falta, o impacto é profundo.
Conclusão
A saúde mental da pessoa com deficiência é construída — ou ferida — todos os dias pelas relações, pelas políticas e pelas barreiras. O Brasil ainda precisa avançar muito, mas discutir esse tema é abrir espaço para transformar dor em política pública e exclusão em pertencimento.
Como pessoa com deficiência, advogado e pesquisador, reafirmo:
não existe inclusão sem cuidado emocional, e não existe cuidado emocional sem acessibilidade.

- Igor Lima é advogado (OAB/RJ), especialista em Direitos Humanos e sustentabilidade, e pessoa com deficiência. Coordenador da coletânea jurídica “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, citada no STJ, TST, STF e presente em instituições como Harvard e Universidade de Coimbra. Autor de artigos publicados em espaços como ABDConst, Future Law e revistas jurídicas nacionais, atua como palestrante em instituições como UERJ, UFRJ, UFF, OAB/RJ e MPRJ. Dedica-se à pesquisa e defesa dos direitos das pessoas com deficiência, com experiência em inclusão, políticas públicas e ESG.
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