Praias cheias, direitos vazios: a falta de acessibilidade para pessoas com deficiência no litoral brasileiro

Praias cheias, direitos vazios: a falta de acessibilidade para pessoas com deficiência no litoral brasileiro OPINIÃO - * Por Igor Lima

OPINIÃO

  • * Por Igor Lima

O verão chega, as praias se tornam o principal cartão-postal do país e o Brasil volta a se apresentar ao mundo como destino turístico. No entanto, para muitas pessoas com deficiência, a pergunta que permanece é simples e incômoda: as praias são realmente para todos?

A exclusão não começa na areia. Ela começa muito antes — no caminho até o mar.

O trajeto já é uma barreira

Durante o final de ano, com cidades lotadas e transporte público sobrecarregado, chegar à praia se transforma em um verdadeiro desafio para pessoas com deficiência. Ônibus superlotados, metrôs sem condições adequadas de circulação, estações com elevadores inoperantes e ausência de informação acessível fazem parte da realidade.

Somam-se a isso situações recorrentes envolvendo carros por aplicativo. Um exemplo comum ilustra bem essa exclusão:

Uma pessoa usuária de cadeira de rodas solicita um carro por aplicativo para ir à praia. Ao perceber a cadeira, o motorista cancela a corrida ou alega falta de espaço no veículo. O resultado é atraso, constrangimento e exclusão.

Esse tipo de prática não é mero desconforto — é discriminação, vedada pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que assegura o direito ao transporte acessível e à mobilidade em igualdade de condições.

Quando o acesso termina antes da areia

Mesmo quando o deslocamento é possível, o cenário nas praias segue excludente. Falta de rampas adequadas, ausência de pisos acessíveis, inexistência de cadeiras anfíbias, banheiros inacessíveis e equipes despreparadas impedem que pessoas com deficiência usufruam do lazer de forma autônoma e segura.

Outro exemplo recorrente evidencia essa realidade:

Uma pessoa chega à orla, mas não consegue acessar a faixa de areia porque não há rampas ou passarelas. O mar está ali — mas inacessível.

O direito ao lazer, previsto na Constituição Federal (art. 6º), não pode ser simbólico. Ele precisa ser exercido na prática.

A falsa oposição entre meio ambiente e acessibilidade

É comum ouvir o argumento de que praias são áreas ambientalmente sensíveis e que adaptações poderiam causar impactos ambientais. A preservação ambiental é, de fato, um dever constitucional (art. 225 da Constituição). Contudo, esse dever não pode ser utilizado como justificativa para negar direitos fundamentais.

A acessibilidade não é inimiga do meio ambiente. Ela pode — e deve — ser pensada de forma sustentável, temporária e reversível, respeitando os ecossistemas naturais.

Negar acessibilidade sob o pretexto de proteção ambiental é criar uma falsa dicotomia: ou se protege o meio ambiente, ou se garantem direitos. O ordenamento jurídico brasileiro exige os dois.

Grandes eventos, grandes lucros, pequenas prioridades

No final do ano, praias como Copacabana recebem milhões de pessoas. Shows da virada, queima de fogos, patrocínios milionários e ampla cobertura internacional movimentam cifras expressivas e projetam a imagem do Brasil para o mundo.

Ainda assim, a acessibilidade segue sendo tratada como detalhe. Um exemplo emblemático demonstra essa escolha:

Estruturas temporárias são montadas para palcos, áreas VIP e camarotes, mas não há espaços acessíveis adequados para que pessoas com deficiência assistam aos shows com segurança e autonomia.

Quando há dinheiro, planejamento e interesse, a infraestrutura aparece. A ausência de acessibilidade revela, portanto, uma escolha política e administrativa, não uma impossibilidade técnica.

O dever coletivo de não normalizar a exclusão

A responsabilidade pela acessibilidade não é exclusiva do poder público. A sociedade também é parte ativa na construção da exclusão — ou da inclusão.

Aceitar que uma pessoa com deficiência fique isolada em um canto distante durante um show, sem visibilidade ou segurança, é naturalizar a segregação. Considerar “normal” que alguém não consiga acessar a praia porque “dá muito trabalho” é reproduzir capacitismo.

Situações que não devem ser aceitas:

  • o cadeirante colocado atrás de grades, longe do palco, “para não atrapalhar”;
  • a justificativa de que não houve planejamento porque “é só um evento temporário”;
  • o silêncio diante da recusa de transporte ou da ausência de rampas e acessos.

A inclusão só avança quando a sociedade se recusa a tratar a exclusão como inevitável. Questionar, cobrar e não se conformar também são formas de garantir direitos.

Acessibilidade é direito, não concessão

A Lei Brasileira de Inclusão é clara ao assegurar:

  • o direito à acessibilidade em espaços públicos (arts. 53 e seguintes);
  • o direito à participação plena na vida cultural, recreativa e de lazer;
  • a vedação de qualquer forma de discriminação.

Praias urbanas, especialmente aquelas que recebem grandes eventos e intensa exploração econômica, não podem ser territórios de exclusão.

O Brasil que se mostra ao mundo

Quando turistas do mundo inteiro chegam ao país e frequentam nossas praias, a imagem projetada não é apenas a da paisagem natural. É também a da forma como tratamos nossos cidadãos.

Uma praia inacessível comunica algo claro: nem todos são bem-vindos.

Quando a acessibilidade acontece: exemplos que desmentem o discurso da impossibilidade

A ideia de que praias não podem ser acessíveis por razões ambientais ou logísticas não se sustenta diante de experiências reais já implementadas no Brasil.

Um exemplo concreto é o projeto Praia Para Todos, desenvolvido no Rio de Janeiro, que oferece acesso ao banho de mar para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida por meio de esteiras removíveis na areia, cadeiras anfíbias e equipes capacitadas.

A iniciativa demonstra que é possível conciliar acessibilidade, lazer e preservação ambiental, sem impactos permanentes ao ecossistema.

Seu funcionamento deixa evidente que:

  • as estruturas podem ser temporárias e reversíveis;
  • o acesso ao mar pode ocorrer de forma segura, organizada e ambientalmente responsável;
  • a inclusão não depende de soluções complexas, mas de prioridade política e planejamento.

Se projetos como esse funcionam em praias urbanas e turísticas, não há justificativa plausível para que grandes eventos, como shows de réveillon em praias mundialmente conhecidas, continuem ignorando a acessibilidade.

O que falta, portanto, não é técnica nem referência. Falta decisão.

A acessibilidade não pode ser sazonal

Quando turistas do mundo inteiro frequentam nossas praias, especialmente em períodos como a virada do ano, a imagem projetada não é apenas a da paisagem natural ou dos grandes eventos. É também a da forma como o Brasil garante — ou nega — direitos básicos às pessoas com deficiência.

A existência de iniciativas como o Praia Para Todos desmonta qualquer argumento de impossibilidade. O projeto demonstra, na prática, que é viável garantir acesso ao mar com respeito ambiental, segurança e dignidade.

No entanto, é preciso deixar claro: acessibilidade não pode ser tratada como ação pontual, projeto piloto ou medida restrita à alta temporada. O direito ao lazer não surge no verão e não desaparece no inverno.

Pessoas com deficiência vivem a cidade o ano inteiro e têm direito ao acesso contínuo aos espaços públicos.

Garantir acessibilidade apenas no fim do ano ou durante eventos de grande visibilidade é transformar direito em espetáculo. Isso não é inclusão — é marketing.

Praias urbanas devem ser acessíveis de forma permanente, com planejamento estruturado, políticas públicas contínuas e fiscalização efetiva. A experiência do Praia Para Todos mostra que isso é possível.

Enquanto a pessoa com deficiência depender da boa vontade, da sorte ou do calendário para acessar o mar, estaremos falhando como sociedade.

Praia é espaço público.
Lazer é direito fundamental.
E acessibilidade precisa estar presente todos os dias do ano — não apenas quando o país decide se mostrar ao mundo.

  • Igor Lima é advogado (OAB/RJ), especialista em Direitos Humanos e sustentabilidade, e pessoa com deficiência. Coordenador da coletânea jurídica “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, citada no STJ, TST, STF e presente em instituições como Harvard e Universidade de Coimbra. Autor de artigos publicados em espaços como ABDConst, Future Law e revistas jurídicas nacionais, atua como palestrante em instituições como UERJ, UFRJ, UFF, OAB/RJ e MPRJ. Dedica-se à pesquisa e defesa dos direitos das pessoas com deficiência, com experiência em inclusão, políticas públicas e ESG.   

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