OPINIÃO
- * Por Carolina Ignarra
Imagine estar ao lado de fora de uma casa com dezenas de portas, mas todas trancadas. Você tem as chaves certas — seu talento, sua formação, sua vontade de crescer — mas do outro lado, ninguém gira a maçaneta. É assim que muitas pessoas com deficiência se sentem ao tentar acessar o mercado de trabalho. E é por isso que, há 34 anos, nasceu a Lei de Cotas no Brasil — uma iniciativa, ainda que imperfeita, de forçar algumas dessas portas a se abrirem.
A Lei nº 8.213/1991, Lei de Cotas, obriga empresas com 100 ou mais funcionários a reservar de 2% a 5% de suas vagas para pessoas com deficiência. Mesmo sob constantes ameaças de flexibilização ou extinção, ela segue sendo a principal via de acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho formal. Nem sempre por intenção ou convicção das empresas, mas por obrigatoriedade. E isso diz muito.
Há mais de duas décadas atuando na inclusão profissional de pessoas com deficiência, vivenciamos uma verdade incômoda: a maioria das contratações não acontece por intencionalidade, mas por obrigação legal. A inclusão ainda não nasce do desejo genuíno de construir equipes diversas e humanas, mas do temor da multa.
Dados da última atualização do Radar Site do governo federal mostram que, em 2021, o Brasil tinha 828.256 vagas reservadas por lei para pessoas com deficiência. Dessas, apenas 49,81% estavam ocupadas. Ou seja, mais de 415 mil vagas estavam “esperando” por uma pessoa com deficiência – ou por uma empresa que de fato quisesse contratá-la. Neste mesmo período, foram realizadas 8.532 fiscalizações, com 3.777 autuações. A Lei existe, mas ainda precisa ser forçada a existir na prática.
A pesquisa “Radar da Inclusão: mapeando a empregabilidade de Pessoas com Deficiência” realizada em parceria da Talento Incluir, Instituto Locomotiva, Pacto Global e a iO Diversidade, revelou dados exclusivos sobre a empregabilidade de pessoas com pessoas com deficiência ou neurodivergentes. Para 95% dos participantes da pesquisa a Lei de Cotas deve continuar existindo e 96% acreditam que ela deve ser fiscalizada com rigor. A pesquisa mostrou o que quem vive essa realidade já sabe: sem a Lei, a maioria dessas portas seguiria fechada. Para 94% dos respondentes, as empresas só contratampessoas com deficiência se forem obrigadas pela Leide Cotas. Já 89% consideram que as empresas contratam pessoas com deficiência para cumprir as cotas, mas não dão condições adequadas de trabalho.
A porta que se abre é muito mais que um emprego. Uma oportunidade de emprego para uma pessoa com deficiência é muito mais que uma ocupação formal — é uma transformação pessoal, emocional, social. Ao longo desses anos, já ajudamos a incluir mais de 9 mil pessoas com deficiência no mercado de trabalho. São histórias de quem chegou até nós depois de incontáveis “nãos”, e encontrou no trabalho a possibilidade de se sentir uma pessoa finalmente pertencente, valorizada, respeitada.
Temos exemplos de pessoas com deficiência que hoje ocupam posições de liderança, quebrando estereótipos, reconstruindo narrativas e inspirando outros a fazerem o mesmo. E essas conquistas não são apenas pessoais. Elas transformam os ambientes, educam colegas, sensibilizam lideranças, desarmam preconceitos.
Ser uma pessoa incluída é, antes de tudo, ser reconhecida. É transformador estar diante de uma pessoa com deficiência que, por anos, foi excluída não por falta de competência, mas por uma característica física, sensorial, intelectual ou psicossocial. E é ainda mais potente perceber o quanto essa inclusão revela a nossa própria humanidade.
A verdadeira inclusão não é sobre preencher uma cota. É sobre reconhecer as pessoas com deficiência como merecedoras das mesmas oportunidades. E é nesse ponto que a Lei de Cotas deixa de ser apenas um instrumento jurídico para se tornar uma ferramenta de transformação cultural. Ela não é o fim. É o começo. É o empurrão que precisamos para perceber o que estava invisibilizado.
Quem atua na linha de frente da inclusão sabe que muitas vezes nos sentimos como ‘Dom Quixotes’ lutando contra moinhos de vento. Entramos em empresas com culturas capacitistas, onde atuamos nas causas que nem sempre são as mesmas. Quase nunca são. Então personalizamos ferramentas e soluções que nos possibilitam realizar transformações.
Mostrar esse espelho às lideranças exige coragem. Quebrar a parede da indiferença dói. Mas, ver essa mesma liderança reconhecer seus preconceitos, desconstruí-los e se tornar aliada… isso não tem preço. É sempre uma vitória. Porque ali nascem pessoas multiplicadoras de inclusão. É isso que queremos continuar despertando.
A Lei de Cotas está longe de ser perfeita. Mas é, sem dúvida, a política pública mais eficaz que já tivemos para garantir o mínimo de dignidade profissional a pessoas com deficiência. Quando a sociedade não garante direitos por consciência, o Estado precisa garantir por obrigação. E assim seguiremos, “abrindo portas”, uma por uma, do nosso jeitinho”. Mas, sempre com a certeza de que do outro lado, há vidas inteiras esperando para pertencer.

- * Carolina Ignarra é CEO da Talento Incluir