A advogada Flávia Marçal, que integrou o grupo de trabalho do Parecer 50 – documento sobre educação para estudantes com autismo aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) concede entrevista ao Portal Terra e comenta sobre o caso de discriminação
Fonte: https://www.terra.com.br/
Atleta do Cruzeiro publicou desabafo em que relatou dificuldade em matricular a menina em escolas de Belo Horizonte; segundo advogada, prática é ‘ilegal e inconstitucional’

O goleiro Cássio, atualmente atleta do Cruzeiro, publicou um desabafo nas redes sociais nesta sexta-feira, 22, sobre a dificuldade que enfrenta para matricular a filha, Maria Luiza, de 7 anos, em escolas de Belo Horizonte. Ela tem Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Conforme o relato do goleiro, a justificativa dada pelas instituições envolve um profissional especializado que acompanha a criança desde os 2 anos. De acordo com ele, mesmo as escolas que se dizem inclusivas não autorizam a presença do acompanhante em sala de aula.
Mas essa justificativa é válida? As escolas podem, realmente, negar a matrícula de uma criança? O tema é polêmico e está ligado às obrigações, por parte da instituição escolar, de oferecer um ambiente e suporte adequado para crianças com deficiência.
O Estadão conversou sobre o caso com a advogada Flávia Marçal, que integrou o grupo de trabalho do Parecer 50 – documento sobre educação para estudantes com autismo aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e homologado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2024, após um ano de debates. Flavia é também presidente da comissão de proteção aos diretos das pessoas com deficiência da Organização dos Advogados do Brasil (OAB) no Pará.
Escolas podem negar matrícula de crianças?
Não. Segundo Flávia, “a recusa de matrícula de alunos com deficiência em escolas de qualquer nível, pública ou privada, é uma prática ilegal e inconstitucional”.
A questão envolve o direito constitucional à educação e, no caso das crianças com deficiência, à educação inclusiva, amparado por leis como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Conforme a advogada, recusar a matrícula de um estudante com deficiência é classificado como ato discriminatório e pode gerar até pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa.
Negar o acompanhante é justificativa válida para negar matrícula?
Segundo ela, nesse caso, a resposta também é não, mas o debate é mais complexo. Flávia explica que, conforme a Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012), é responsabilidade da escola oferecer as condições necessárias para a participação e aprendizado de crianças com autismo, o que inclui assegurar um acompanhante especializado.
Por esse motivo, é a escola a responsável por custear ou contratar o acompanhante. O assunto, porém, ainda é controverso e depende de interpretações.
A lei brasileira prevê o acompanhante especializado como direito do estudante com TEA desde 2012 em “casos de comprovada necessidade”, mas sem especificar suas funções.
Um “profissional de apoio” também está previsto na Lei Brasileira da Inclusão como alguém que “exerce atividades de alimentação, higiene e locomoção do estudante com deficiência e atua em todas as atividades escolares nas quais se fizer necessária”.
“Ocorre que, muitas vezes, as próprias famílias – e eu imagino que seja o caso do goleiro Cássio – querem que seja o profissional contratado por eles a acompanhar aquela criança, porque, infelizmente, a qualidade e a qualificação dos profissionais contratados pela escola costumam ser bem aquém do que se espera”, comenta a advogada.
Segundo ela, nesses casos, o que se sobressai é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prioriza o melhor interesse do estudante. Verificar uma melhor alternativa envolveria uma mediação com o Ministério Público e a Defensoria Pública, mas negar a matrícula em razão disso continua sendo considerado ilegal. Flávia afirma que o goleiro poderia, inclusive, entrar com uma ação contra as escolas que negaram a matrícula de Maria Luiza.
O que é educação inclusiva?
Conforme a advogada, são quatro pilares para garantir a educação inclusiva:
Acesso
Permanência
Participação
Aprendizagem
“No caso (do goleiro), não se conseguiu nem o primeiro pilar: o acesso”, diz Flávia. “Ela não está conseguindo nem ser matriculada. Então, não conseguimos nem entrar nessas outras áreas de discussão.”
Por que o acompanhante é importante para alunos com autismo?
Na opinião de Flávia, o profissional é essencial para inclusão e desenvolvimento de alunos com TEA e seria responsável por auxiliar o estudante em questões como comunicação, interação social, higiene, locomoção e cuidados pessoais.
Segundo ela, o profissional ajudaria a criança tanto no aspecto comunicacional (que envolve executar atividades em sala de aula) quanto nas interações sociais (que têm a ver com desenvolver amizades na escola e lidar com possíveis crises). A intensidade do apoio depende do nível de autismo, classificado em 1, 2 ou 3.
Os profissionais, muitas vezes chamados de acompanhantes terapêuticos ou ATs, são uma demanda de muitas famílias que afirmam que seus filhos precisam de ajuda para, de fato, serem incluídos nas escolas já que os professores não têm formação para lidar com TEA.
Quem discorda – e esse é o entendimento de algumas escolas particulares – argumenta que o AT interfere na relação do aluno com o professor na sala de aula e, por isso, não poderia ser responsável por auxiliar em questões pedagógicas, somente em necessidades de locomoção e alimentação, por exemplo.
O que falta esclarecer na legilação?
Segundo Flávia Marçal, ainda são necessárias orientações mais claras, especialmente em nível federal, sobre a educação de crianças com autismo. A legislação aborda a necessidade dos acompanhantes especializados, mas não descreve as suas funções. Há apenas o esclarecimento dos deveres do “profissional de apoio”.
Conforme a advogada, conceitos como atendente pessoal e profissional de apoio escolar ainda seguem sem a devida regulamentação. “O Parecer 50 do CNE foi restringido para não abordar claramente o assunto. No mesmo sentido, a Lei Berenice Piana vem sendo ameaçada por grupos que defendem que o autismo não é uma deficiência, o que fere frontalmente a legislação brasileira”, diz ela.